sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Sobre mosaicos e percepções



E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade


[Vinícius de Moraes/Carlos Lyra in Marcha de quarta-feira de cinzas]




o estudo, por Sergia A.


O tempo não está para euforias, é certo, mas os dias são de festa e a tristeza me cansa. Ao invés de ficar nos cantos resmungando ando tomando gosto pela arte dos mosaicos. O vaso quebrou? paciência! Vamos juntar e ver o que dá para fazer com os cacos. Partindo deste princípio, o artista plástico Vik Muniz foi além no jogo da percepção visual, com o seu “Lixo Extraordinário” (2010). O documentário mostra o trabalho desenvolvido com catadores de lixo de Duque de Caxias-RJ, e ganhou prêmios no festival de cinema de Berlim (categoria Anistia Internacional) e no Festival de Sundance. Foi no lixão, e com a ajuda de quem dali tira o seu sustento, que ele encontrou matéria prima para produzir algo inusitado, de valor estético e social, revelando todo o poder da criatividade na arte de dar vida nova ao que sobrou.

Desafiada e com o intuito de não me perder em amargura, ainda que com direito a uma taça de espumante, recolho da lama os cacos para compor minha listinha de percepções. Sempre funciona:

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Moral em tempos de cólera



Qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra "bom" nas diversas línguas?
Então, descobri que esta palavra em todas as línguas deriva de uma mesma
transformação conceitual; descobri que, em toda parte "nobre", "aristocrático",
no sentido de ordem social, é o conceito fundamental, a partir do qual se desenvolve
necessariamente "bom" no sentido de "que possui uma alma de natureza elevada",
de que "possui uma alma privilegiada". Esse desenvolvimento se efetua sempre
paralelamente a outro que acaba por evoluir de "comum", "plebeu" "baixo" para
o conceito de "mau".
O exemplo mais eloquente desta última transformação é a palavra alemã
sclecht (mau), que é idêntica à palavra schlicht (simples);

[Friedrich Nietzsche in Genealogia da Moral p.27]



Xanana: cor e resistência, por Sergia A.


Se 2016 nos trouxe alguma lição, essa está, sem dúvida, relacionada ao quanto crenças pessoais afetam o julgamento de fatos. A Oxford Dictionairies elegeu como termo do ano o neologismo "pós-verdade" (do inglês post-truth). Em suas palavras, trata-se de um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Nada mais perfeito do que a língua e sua flexibilidade ou possibilidade de adaptação para nos definir a cada novo momento.

Há apenas seis anos (2010) 84% da população brasileira acreditava que o país estava melhor. Isso é um fato, um sentimento respaldado por números. Em 2008 uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontava que, pela primeira vez na história do Brasil, mais da metade dos habitantes do país pertenciam à classe média. Menos de uma década depois, boa parte da mesma população aceita resignadamente e propaga a falácia de que os governos que favoreceram tal façanha arruinaram o país deixando uma herança maldita. Situação que só se resolverá com o sacrifício de pobres e trabalhadores. Fomos hipócritas enquanto o deslumbre das emergentes classes C e D, diante da possibilidade de consumo, alimentava lucros? A alegria pela redução da fome, da injustiça social e da desigualdade era apenas uma resposta à criação de nichos de mercado? Quão vaidosa foi a esquerda no poder, ao fechar os olhos para a velha política de relações promíscuas entre Estado e grandes empresas (especialmente a indústria e a construção civil), acreditando cegamente em um pacto de conciliação de classes? Ou, em que medida o conceito de "bom" e "mau" desliza entre os nossos sentimentos em relação aos apelos do falso moralismo, ou se firma nas nossas crenças volúveis de que a felicidade individual é tudo o que importa?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Onde termina este mar?



O desafio: traduzir em palavras a leveza e volatilidade da arte da dança, aliada ao ritmo e ao balanço do mar. Ler Cecília Meireles foi o que me veio à mente de imediato. Depois lembrei de uma cena de férias em família. Estávamos na praia. Enquanto os outros enchiam baldes de areia, uma delas se posta em frente ao mar. Com as ondas beijando os pés cruza os braços, e do alto dos seus quatro anos me lança um olhar pensativo e diz: "onde termina este mar?"

Foi me dado o fio. Eis o texto.




ensaio geral, por Sergia A. 




Mar

Foi desde sempre o mar, sopra Cecília Meireles ao meu ouvido. Como brisa cálida que o movimento das ondas derrama sobre a areia, desalinhando cabelos e nos deixando mudos. Dele viemos, sopra a ciência depurando racionalmente nossa origem. A ele nos voltamos, sempre, olhares petrificados em contemplação ou no exercício aventureiro da arte de viver.

sábado, 3 de dezembro de 2016

A festa do silêncio



Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas. 


[António Ramos Rosa, em Volante Verde, 1986] 
 



gotas tímidas, por Sergia A.



Li por acaso uma crônica que publiquei há dois anos [Advento IV]. É desolador constatar, que de lá para cá, em nada avançamos. Ao contrário, fomos arremessados por ventos furiosos para uma ponte que nos leva ao pior do passado. É a ela que retorno quando toda a lama, o lobby e a lambaça, jogados no ventilador por esses dias, nos entristecem mas apagam as aparências e clareiam o caminho.

Depois de dois anos de batalhas entre 'coxinhas' e 'mortadelas', somos alçados ao posto de espectadores manipulados da guerra entre políticos corruptos e paladinos da justiça e da moral. Misturam-se em um jogo sujo, estufam o peito ensimesmados, enquanto a economia do país se esfacela. As forças ligadas aos grupos financeiros tiram proveito do caos e armam seu bote para manter lucros e privilégios, enquanto a vida das pessoas escoa pelo ralo. Em minhas andanças pelo olhar do outro, vejo a volta das festas sem alegria. Vejo a incerteza sobre a escola do filho no ano que vem. Se o salário será suficiente para o plano de saúde. Ou, se sequer haverá salários. Vejo o medo diante da violência que campeia pelas ruas. A dos marginais e a da mão poderosa do Estado militarizado. De certeza apenas a angustia existencial que nos persegue: algo de muito ruim pode, de repente, acontecer.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Enquanto Seu Lobo não vem



A vida é um caminho de direção oposta

(Marcia Tiburi, in Era meu esse rosto p.190)




outono in Tatton Park, Knutsford - UK, por Sergia A.



Quando ele se aproximou pela primeira vez, eu nem sequer dava conta de mim. E ele veio uma segunda, anos depois ainda que muito cedo, mostrar suas garras infalíveis enquanto passeávamos na praça distraidamente. Ouvi histórias que ensinavam que ele vem, inevitavelmente, a cada um e a seu tempo chegará sem falhas, chamando pelo nome. De surpresa, com aviso prévio, ou, às vezes, com data agendada pela própria presa.

Nos intervalos não aprendi a cozinhar. Por não ver graça em seu dia ao pé do fogão minha mãe se recusava a transmitir às filhas tal legado. Ainda assim uma delas é do tipo que segue os grandes mestres. O prazer da comida fumegante em hora exata, e do vinho em ponto de harmonização. Foi assim que, enquanto ele não vinha, eu lavava louças nas temporadas de frio. A pia que sobra para quem não cozinha. Nada mais reflexivo, contemplativo, relaxante. Uma meditação em alto estilo. A água quente na torneira entoando o mantra entre vapores, e eu ali ruminando os assuntos derramados sobre a mesa. Verificando se o meu entendimento estava correto, se meu ouvido pouco treinado em outras línguas havia, de fato, captado a essência. A esponja soprando bolhas sobre a engenharia dos arcos, a arquitetura bizantina, as valquírias e os atos musicais visíveis de Wagner, a grandiosidade de Shakespeare, planos de viagens e a tradução de Pope para a Ilíada de Homero.

domingo, 25 de setembro de 2016

Tempo e movimento



O tempo não é uma ilusão. 
Ele existe e está realmente avançando.

[Marina Cortês, física da universidade de Edinburgo, 
em entrevista para BBC]



máquina do tempo, por Sergia A.



Precisei recorrer a alguns conceitos da física para me certificar da direção da seta do tempo diante do movimento retrógrado que inverteu nossos passos na trajetória. A epígrafe resume o pensamento dos que acreditam que o universo é feito de uma série de eventos únicos, e por não se repetirem só podem influenciar os eventos seguintes dando ao tempo uma direção: o futuro. Há controvérsia. Há os que negam a ideia da "flecha do tempo". Mas essa não é a minha questão. Falta-me conhecimento para discuti-la. Quero apenas uma tábua de salvação. Algo que me tire da angústia de acordar todos os dias com uma nova sensação de dejà vu.

Mergulho nesta onda incômoda para trazer à tona o real.

Vivi a adolescência durante a última década da ditadura militar brasileira. O ano de 1975 arrastou-me para a capital para fazer o ensino médio (ou segundo grau, para ser fiel à nomenclatura). Não tinha consciência do que acontecia ao meu redor, além dos homens de verde preenchendo esquinas. Uma palavra ou outra que escapava do burburinho dos adultos, sussurrado entre paredes, despertava pequenas faíscas que só mais tarde acenderiam. Uma Lei de 1971 havia imposto o ensino profissionalizante obrigatório, depois de uma Constituição que eliminava a exigência de um gasto mínimo em educação. Algo me diz que, neste ponto, qualquer semelhança com o que ocorre no tempo presente já não parece ser apenas uma sensação de dejà vu. Ganha status de modus operandi.

domingo, 18 de setembro de 2016

Lenda, ficção e realidade em Velho Chico



Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?

[Alejo Carpentier, in O Reino deste mundo, prólogo p.12]




a travessia, por Sergia A. (1994)


Por muitos anos férias foram portas para estrada e aventuras. Pequenas ou grandes. As crianças muito cedo ganharam a autonomia de fazerem suas próprias malas. Com valiosa contribuição da escola que era chegada a aulas passeio, e foi responsável pela elaboração de um rol mínimo infalível. Colado no guarda-roupa, ao primeiro sinal era só consultar e adequar quantidade de dias, clima, propósitos. Uma vez achamos por bem rodar pelas estradas do nordeste. O compromisso no sertão era visitar Pe. Cícero em Juazeiro-CE e o mosteiro de São Bento em Garanhuns-PE, depois descer a serra, atravessar o Rio São Francisco, uns dias em Aracajú-SE para de lá perseguir o cheiro do mar, margeando toda a costa até o Ceará nos conduzir de volta ao sertão.

Poderia enveredar pelos muitos atalhos que esta aventura descreveu, mas no meio dela teve uma travessia. É a ela que a minha memória caprichosa teima em recorrer para fazer conexões. Lembro do nosso encantamento ao avistarmos a grandiosidade do Rio. A cor das águas, a imensidão que os compêndios de geografia não conseguiam traduzir. Lembro dos pequenos olhares assustados buscando confiança no meu ao descobrir que embarcaríamos, com carro e tudo, em uma balsa. Ao som do ronco contínuo do motor e embalados por um leve balançar enfrentamos, lentamente, os nossos receios até atracar na outra margem bem adiante. Tempo de escutar histórias, causos, ver carrancas e despertar para suas lendas e mitos. Pela primeira vez ouvia falar do Gaiola encantado, o barco fantasma que transporta as almas para o além. Ali era torcer para não ouvir o apito.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Sobre a aridez e as sementes


repórter: - você está bem? qual é o seu nome?
o estudante: - André (responde e permanece estendido no chão, sob a mira de um policial)
repórter: - quantos anos você tem?
o estudante: - dezessete... dezessete anos.
o policial: - tu devias era está procurando Pokémon, não?

[cena da repressão policial a manifestantes, reproduzida 
de um vídeo de uma agência de notícias independente]


o que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

{Wislawa Szymmborska, in Filhos da época - [poemas] p.77 - trad. Regina Przybycien}




a aridez o azul, por Sergia A.


É sete de setembro no planalto. Muralhas humanas entardecidas dividem o que dizem ser o bem e o mal. o tempo segue levando no vento a aridez e as sementes... independentes. Isso me veio enquanto examinava o céu azul de Brasília, sentada em um tapete sobre a grama ouvindo a algazarra de crianças e pássaros ao redor. Na esplanada uma esquadrilha fazia acrobacias para saudar a independência, abafando o grito dos apartados da grande festa. O grito dos adultos que temem a perda de conquistas. O grito dos jovens que temem o futuro.

Em outras ruas os dias que antecederam a cena protagonizaram horrores. Meninos permaneceram, por longas horas, incomunicáveis, nas mãos de experientes investigadores, por suspeita de que poderiam vir a cometer um crime.  Em um tumulto de dispersão, um homem posiciona-se e abre os braços. Estende-os diante de uma força desnecessária. Achou que seu sinal seria decifrado. Ferido, ouve de quem lhe deveria prestar socorro uma sentença: há os que merecem a violência. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Duas narradoras. Dois autores. Um fio


Quando se é cinza nada nos pode doer.

[As areias do imperador/1- Mulheres de cinzas, p.27]


A minha mãe disse que era um vulcão. São as flores
das mulheres. São de sangue. São de lume. Magoam.
Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o
que isso significava de perigo e condenação.


[A desumanização, p.17]



dois livros um café, por Sergia A.



A montanha estava crescendo na mesinha de cabeceira. Decidi avançar acelerando um pouco o ritmo. Por puro acaso um veio logo depois do outro tornando a leitura comparativa inevitável. Dois autores de língua portuguesa e de origens diferentes. Um moçambicano. Outro português (nascido em Angola). Gosto de imaginar que algo muito forte nos une: a língua. Embora nossas formas de expressão sejam distintas. Quando falo nossa, refiro-me à minha em relação à deles bem como a dos dois entre si. No entanto um ponto, neste caso, os une e me desperta: a criação de uma voz feminina que narra a solidão de estar em um mundo hostil em tempos, espaços e culturas muito diversas.

Seria simplificador dizer que em As areias do imperador/1-Mulheres de cinzas Mia Couto remonta a história da guerra ao sul de Moçambique no fim do século XIX, a partir de dois pontos de vistas. Mas, para resumi-lo sem tirar do leitor o prazer da descoberta, não devemos ultrapassar o limite da orelha: uma ficção inspirada em fatos e personagens reais, em que duas vozes se alternam para narrar o ocorrido no lugarejo Nkokolani. De um lado o sargento português, enviado para organizar a batalha contra Ngungunyane (o último imperador africano no comando do chamado Estado de Gaza). Do outro, a sua intérprete. A viva, uma garota pertencente à tribo local mas educada por missionários europeus. Voltando às impressões, a narrativa parece superar o plano do autor exposto na estrutura que dá voz a uma personagem encerrada em um espaço-tempo histórico e, por natureza, opressor. Pois essa voz transcende o seu lugar e referências culturais, para atingir em cheio o leitor atento do século XXI. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Das surpresas das manhãs


No encerrar dos seus dias, julho me presenteou com estes versos escritos em forma de agradecimento. As primeiras palavras surgiram quando acabava de chegar da Praia Peito de Moça, Luis Correia-PI, onde vou sempre que preciso aquietar a loucura dos dias.

O retorno é embalado por gratidão... pela luz, pela areia úmida que acaricia meus pés... pelo que ainda resta das dunas pequenas e arredondadas que deram origem ao nome... pelo sol que se derrama acalentado pelo gorjeio do mar... pelo vento e pelo silêncio que se instala quando os veranistas se vão [ainda que por aqui o tempo faça pouco caso das estações, as temporadas são bem marcadas e um dia eles se vão].

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A imperfeição das horas



Com nossa visão acalmada pelo poder
Da harmonia, e tomados por um êxtase profundo,
Nós vislumbramos a essência vital de todas as coisas.

[William Wordsworth¹]


o relógio na parede, por Sergia A.



Julho se dedicou a elas. Quebrado em três trechos para abrigá-las em suas divergências naturais: de sul e inverno, abrir portas para chegadas, ao mar e ao vento do litoral. Em uma noite do meio estamos reunidas na sala. O relógio badalando e nos obrigando a ver o tempo passar. Estático a nos fixar, como parte da parede, apesar do movimento incessante dos ponteiros e da chavezinha de cordas lembrando gestos dos ancestrais. Histórias que sou obrigada a repetir e repetir. E de repente ela pula no meu colo e pergunta:
- para que servem as horas?

Engasgo antes de responder. Preciso de um gole de água para dar tempo aos neurônios de processar alguma ideia e transformá-la em algo que se encaixe na sua pouca idade. Alinhavo alguma coisa sobre a necessidade humana de marcar o tempo exato das coisas. O dia a noite, a agenda, o trabalho, o descanso. Resposta imperfeita, certamente. Mas ela ainda não aprendeu a perder seu tempo em busca da perfeição. Aceita com aparente naturalidade os desequilíbrios dos adultos e volta aos jogos e inquietação dos demais.

domingo, 26 de junho de 2016

Da dança e do amor infinito




Toda bailarina pela vida vai levar

Sua doce sina de dançar, dançar, dançar...

[Toquinho, in A bailarina]




Camarim, por Sergia A. e "O exame de Ballet" [pastel de Degas, in Denver Art Museum]


Ela tinha quatro anos. Na entrada lateral do Teatro a entrego aos cuidados da coordenação. Ela se recusou a subir no palco, disseram-me na saída. Enxuguei suas lágrimas e a abracei longamente para dizer que estava tudo bem. Era grande o peso do palco. Naquele instante nada me dizia que ele se tornaria leve nos anos que se seguiram. Tão leve quanto os saltos. Leve como o movimento ritmado. Leve como as asas do tempo.

Ela tem quatro anos. Fico encarregada de levá-la ao camarim. Não devo permanecer no recinto. Santuário de transformação em dois tempos. Cabelos em coque. Mãos habilidosas retocam adereços. Viro-me em despedida e me assusta a sensação de dejà vu. O mesmo tipo de rosto em um novo porte. Sem lentes ajustáveis fotografo a elegância natural que se manifesta, tendo a ousadia de me imaginar diante de uma modelo de Degas. 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Os motivos


(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)


[Sophia de Mello Breyner, in Viagem - fragmento do poema Naufrágio]




delicadezas, por Sergia A.



delicadezas se debruçam sobre a janela. a pedido do vento que sopra para longe as nuvens. abrem caminho para os raios de um sol que do outro lado se pendura.

delicadezas se balançam na janela. a pedido do verde cansado de si mesmo. arranham o vidro os pequenos espinhos, para que se perca do olhar a nitidez. 

delicadezas alçam voos sobre a janela. a pedido do azul que a vista já não comporta. batem asas em partida afunilando ciclos. ou deixando pistas de um retorno possível.

definha a cor. atrás de um novo rabisco o paraíso. 



segunda-feira, 13 de junho de 2016

O deboche dos desesperados e os sobreviventes



O fole roncou no alto da serra
Cabroeira da minha terra
Subiu a ladeira e foi brincar


O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco
Peba Macho, Bode Branco
Todo mundo foi brincar
Maria Doida, Margarida Florisbela
Muito triste na janela, não dançou
Não quis entrar

[Nelson Valença/Luís Gonzaga in O fole roncou]



Vila Junina 2015
[gentilmente autorizada pela fotógrafa Maria Dimas R. Lages]



Quem nasce nas bandas de cá aprende cedo a amar junho. Fogueiras, guloseimas, brincadeiras, fogos, alegria. Na escola, na igreja, nas praças, nas ruas, tudo é festa. Quem viveu isso na infância não consegue ouvir o fole roncar sem sentir o peito sacudir, a espinha arrepiar e o corpo balançar involuntariamente. Quaisquer que sejam as circunstâncias sempre haverá um xote, um baião, um xaxado, uma quadrilha, um arrasta-pé para animar o forró ou aquietar o coração. Talvez por isso, quando amanhece o mês, eu fique assim olhando para o céu em busca de andorinhas.

Já tremulam bandeiras sob um céu de anil, embora as circunstâncias não nos parecem das mais animadas. Que o diga as marias doidas que carregam suas tristezas muito além das janelas. Em trupes ensanguentadas repetem versos esquecidos que ganham vigor no falar dos nossos dias. Elas e os meninos. Os meninos tinham uma arma, dizem os policiais. O menino recebeu uma bala na cabeça como castigo pelo furto. O parceiro sobrevivente quer estudar, ser jogador de futebol, ser alguém na vida. O menino estava na rua dos outros meninos que estudam e serão alguém na vida. Em uma rua da cidade símbolo de grandeza. No estado que deve explicações sobre o furto. Não, não apenas de um carro de um condomínio em um bairro rico. Mas também o da merenda que muitas vezes garante a frequência de crianças na rede pública onde o menino sobrevivente quer estudar. No mesmo estado que deve explicações sobre uma licitação suspensa por superfaturamento na compra de medalhas, dessas que recebem os esportistas em competições. Essas que o menino sobrevivente quer ostentar no peito e encher os pais de orgulho, nos campeonatos de futebol. Furtos ironicamente não castigados. Nos meus delírios escrevi esse enredo para uma quadrilha com o nome Deboche dos Desesperados. Acordei. É junho. Não é quadrilha e nem delírio. Está no jornal.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

sobre botões e coletividade


Castelos
nomeiam as pedras
que fortificam os sonhos
ou o enredo de tragédias.

[Sergia A. - 07/06/15]


"Ainda vivemos na idade média.
Só invertendo a lógica do estupro sairemos dela."

[Marcia Tiburi in Lógica do estupro, Revista Cult]



botões, por Sergia A.



Venho de uma casa de sete mulheres. Nenhuma relação com o romance que virou minissérie, só não consigo me livrar do número. Cheguei como a sétima, para formar um grupo de oito. Não. Éramos mais. A presença da avó era constante. Não. Éramos mais. Na ampla cozinha de minha mãe viúva se misturavam as histórias da lavandeira, das tias, das comadres, das vizinhas. Pronto, éramos uma coletividade. Presentearam-me, em ocasiões distintas, com uma imagem de Santa Joana D'Arc e um livrinho sobre Santa Maria Goretti. Virgens heróicas. Derrotadas pelo poder masculino que naquela casa se projetava como sombra. Uma condenada à fogueira por não ceder em suas convicções. Outra assassinada por não atender aos desejos sexuais do seu senhorio. Ofertaram-me a ambiguidade: fortaleza e fragilidade. Disseram-me: essa é a nave! cabe-lhe apertar os botões!

Aprendiz, quis entender a lógica que na fortaleza, claramente percebida a minha volta, eterniza a fragilidade. A lógica da violência dos livros e dos jornais que narravam, com frequência, atos em defesa da honra. Ou, daquela sombra que em minoria invadia a cozinha e determinava suavemente o nosso jeito de navegar. É significativo que tenha sido por mãos masculinas que publiquei o primeiro texto. Um irmão e um amigo, nas horas vagas, editavam um pequeno jornal em uma cidade do interior. Gozavam da liberdade de arriscar. Um dia precisaram de um texto para fechar uma página, qualquer coisa servia. Apertei o botão e direcionei as linhas ao narcisismo dos homens como fruto da educação, à postura assumida pelos que se sentiam o centro do mundo. O texto se perdeu com o tempo. Mas, pelo que lembro refletia, talvez de forma intuitiva e ingênua, minhas andanças pelo espaço, tentando competir de igual para igual no trabalho e na vida pessoal. Eram agora seres vivos, não sombras. A própria nave me ensinava a manusear os botões.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Vivendo um cenário mutante II


Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

(Mia Couto in Confidência) 


o por do sol sobre o planalto central, por Sergia A.


Em junho de 2013 usei esse título para um texto inspirado em versos de Mia e na perplexidade de um momento que dava os primeiros sinais do que nos aguardava em um futuro próximo. De manifestações dissonantes a vaias e xingamentos em estádios chegamos às vias de fato: derruba-se uma presidente, rasga-se um projeto e a democracia cambaleante pede socorro. Se perplexidade era a palavra, hoje é o vazio que nos angustia. E, repito, o tempo segue prenhe de interrogações.

As instituições democráticas estão funcionando, anuncia o quarto poder como se tudo fizesse parte do enredo de mais uma novela. Constatamos, todavia, pela vergonha que se seguiu, que o elo de representatividade há muito se perdeu. Escancarou-se a divisão. Indignação é a palavra que entala a garganta dos perdedores enquanto um líquido amargo trava a língua dos vitoriosos. Sim, perdemos todos! Os que se regozijam se restringem à pequena parcela que teima em frear o curso da história, como se houvesse possibilidade de retorno ao paraíso que entenderam ser seu por direito divino.

sábado, 30 de abril de 2016

O mapa


Poderia me ser tirada
a propensão para comparações

(Wislawa Szymborska in Entre muitos, trad. Regina Przybycien)



recorte do céu, por Sergia A.
[a alguns passos do memorial da imigração polonesa]



o vento corta a pele. entre pinheiros, araucárias, cedros e plátanos sigo fantasiada de frio. estrangeira em meu país. de vez em quando uma palmeira, uma aroeira, um sabiá e a língua fazendo ponte entre sotaques. 

outono sem cor. no bosque levanto os olhos em busca de luz. vejo-te sufocado em sombras, com uma lança sobre o peito a sangrar...

redesenho o relevo açoitado pelo vento. sonho cores de areia e mar. desejo trançar teu cabelo como fazem as mães: é só um pesadelo, vai passar.

sábado, 9 de abril de 2016

Sobre afeto e movimento




Mas o que acontecerá, se a missão de um homem exige 
que ele só conheça o vínculo com sua causa, e então 
desconheça qualquer relação atual com um TU e a 
a presentificação do TU, de modo que tudo aquilo que 
o envolve se torne um ISSO, um ISSO útil à sua causa?

(Martin Buber in Eu e Tu, trad. Newton Aquiles von Zuber)



O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala
complementar, mas a conversa real e concreta entre diferenças
que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva.

(Marcia Tiburi in Como conversar com um fascista - Revista Cult)




o céu na minha janela, por Sergia A.



Depois de alguns dias de desânimo, pulei da cama. Contra todos os argumentos do meu corpo levantei e mostrei a ele outra possibilidade, além do medo. Pus o maiô, peguei minha sacola e sai mastigando uma barra de cereal. Cinquenta minutos de braçadas, meus músculos pedindo colo, aproveito a fluidez da água para fazer alongamentos e exercícios de respiração. O silêncio interior amplia os ouvidos. Escuto a algazarra das crianças a algumas raias de mim. Meninos entre oito e doze anos, no máximo, decidindo por um jogo aquático que encerraria o treino. A professora propõe:
- Marco Polo ou Voleibol?
- Marco Polo, gritam três.
- Voleibol, gritam os outros dois.
- Decidido! diz a professora já se organizando para iniciar o tal Marco Polo. Eis que um deles diz com voz de choro carregada de mágoa:
- Ah! tia assim não vale! já foi Marco Polo na aula passada!
Ela se aproxima dele, chama-o pelo nome, olha nos seus olhos e diz com voz afetuosa:
- meu filho, fizemos uma votação e a maioria decidiu por Marco Polo, vamos respeitar? Na próxima, quem sabe...
E o jogo prosseguiu com muita alegria. Sai da piscina sentindo uma leveza que parecia não ter origem apenas no elastecer das minhas articulações viciadas.

terça-feira, 5 de abril de 2016

A cidade encoberta



as brumas, por Sergia A.


a névoa esconde o contorno
                           as fronteiras 
                           já não nítidas 
                           no meu corpo entardecido 
                           à revelia 
                           o intangível 
                           encontra passagem 
                           em frestas 
                           no teu corpo permanecido
                           intocado
                           encoberto
                           imune 
                           ao voo retilíneo dos dias


                           no retrovisor
                           sombras repetidas
                           surdas às batidas do relógio
                           libertam-se do desejo emudecido

                                                a névoa guarda do tempo o que restou




domingo, 27 de março de 2016

O outro lado do rio



Sobre todo creo que no todo está perdido 
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro 
Rema, rema, rema-a Rema, rema, rema-a

(Jorge Drexler, in Al otro lado del rio)



o verde-amarelo e o rio, por Sergia A.



Não é segredo: adoro filmes e livros. Vivo tentando decifrar os seus códigos. Assim é que chego a uma das cenas mais significativas do filme Diários de Motocicleta (Walter Salles, 2004). É noite, a personagem Ernesto, um estudante de medicina, faz uma travessia para o lado do rio em que se encontram os doentes, os intocáveis. O filme trata da viagem iniciática de Ernesto Guevara e Alberto Granado, e esse é o ponto da epifania. O ponto em que ambos reconhecem o seu estar no mundo. Há uma luz do outro lado que os chama. A travessia a nado é representação da escolha, e essencial para compreensão do que aconteceria em suas vidas futuras que o filme não aborda.

Por favor não fuja, caro(a) leitor(a)! esta não é uma defesa anacrônica da revolução proletária. Assim como a não é o filme. É apenas uma forma de tentar entender o momento atual e o papel de pessoas que deram a vida por uma causa, como Cristo, como Gandhi, como Joana D'Arc, como Martin Luther King e tantos outros. Condena-se a violência como componente da escolha de Ernesto. Certo, inquestionável e, principalmente, não aplicável para o grau de civilização que alcançamos. Mas da sua causa existe um legado que me faz esquecer, por um instante, os seus pecados. Legado que tem início exatamente na travessia retratada na cena: a escola de medicina cubana. Sim essa mesma escola que espalha médicos pelo continente africano, pelos pontos extremos do Brasil, pelos lugares onde não chega a medicina de ponta ou financiada pelos grandes laboratórios e indústria de equipamentos. Sim aquela medicina, hoje reconhecida por entidades internacionais, foi um projeto de Alberto Granado Jimenez, o companheiro de Ernesto na viagem pela américa do Sul e de cujo diário (Con el Che por Sudamérica, 1978) o filme é tradução.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Tempo de nuvens




a chuva o mar, por Sergia A. [Luis Correia-PI]

nuvens derretidas
afogam linhas no mar
céu e terra incontidos

sábado, 12 de março de 2016

Do elogio à serenidade


O caos é uma ordem por decifrar.

(José Saramago, in O homem duplicado - como 
citação do inexistente Livro dos contrários)



o camaleão, por  Sergia A.


Ideológico. Meu voto foi sempre ideológico. Por ideológico, que fique claro, quero dizer que defende uma ideia ou um conjunto delas. Nunca fui pressionada para votar em parentes ou amigos. Até tive amigos políticos, mas quando receberam meu voto ou ajuda nas campanhas, foi porque naquele momento compartilhávamos as mesmas ideias. Nem sempre ganharam eleições, pelo contrário, amargamos doloridas derrotas. Nas vezes em que deu certo, nem sempre o trabalho dos eleitos atendeu completamente às minhas expectativas, em outras foi decepcionante. Ainda assim, meu voto continua sendo racionalmente ideológico. Sou teimosa. Acredito em ideias que viram projetos. Aprendi que há um tempo para todas as coisas.

Digo isso em resposta a uma provocação que afirma ser esse um pensamento atrasado. A queda do muro de Berlim teria também transformado em poeira a ideia de esquerda e direita. Para não me acusarem de sectarismo, recorro a um filósofo italiano, muito respeitado pela social democracia brasileira (antes da guinada para a direita) para dizer que enquanto houver uma acentuada desigualdade social no mundo, a esquerda e a direita estarão mais vivas do que nunca. Para o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) a diferença entre direita e esquerda é que a primeira reúne as forças que desejam a manutenção do "status quo", a partir do pressuposto de que a desigualdade é uma fatalidade impossível de mudar (uns merecem outros não). A esquerda, por outro lado, reúne os que acreditam na possibilidade de mudar o mundo, de criar uma sociedade menos injusta. Meu coração, impulsivo e aventureiro, se derrete em simpatia pelo segundo grupo. Nunca consegui acreditar que comunistas comiam crianças, embora tenha sempre manifestado minhas críticas quanto aos erros do chamado 'socialismo real'.

sábado, 5 de março de 2016

Equilíbrio em dois tempos



moldura para o céu, por Sergia A.


a janela de pedra guarda o céu. colunas erguidas para pouso de arcos. e anjos. e rasgo estreito de luz sobre o caos do profano. talhado a martelo e cinzel. obscuros caminhos de expiação.

a janela de pedra reflete o céu. colunas mantidas para pouso de arcos. e anjos. e vidros redirecionando a luz sobre olhos dispersos. moldados a fusão e resfriamento. voos inevitáveis em um infinito azul.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cartas da Itália: Perugia



l'occhio anela fessure
sa il fruscio
che fa la luce quando
scioglie la pupilla


        ***

o olho cobiça fendas
sabe o barulhinho
que faz a luz quando
derrete a pupila

(Vera Lúcia de Oliveira, in O olho/L'occhio
Tempo de doer/Tempo di soffrire, 1998 - trad. da autora)




Pela janela, por Sergia A.





Perugia, 17/10/2015

Querida L.


Os ares da Umbria me devolveram, por fim, uma respiração tranquila. Talvez a pureza da altitude (por aqui as cidades se formaram no cume das colinas, como podes ver pela janela do trem). Estou a algumas escadarias do topo de Perugia, mergulhada na arquitetura medieval e bem distante da moderna correria da cidade baixa. Ou, talvez, a recepção calorosa dispensada a um passaporte "brasiliano". Como faz bem ser olhada nos olhos. Como faz bem esse olhar que te eleva e te põe como igual. A origem comum das nossas línguas ajudando na compreensão do entusiasmo deles ao falar do "Brasile" desejado por seus antepassados, e dos estudantes que agora fazem o caminho inverso para ter seus dias de intercâmbio na Università per Stranieri di Perugia. Sob o efeito de tal encantamento e do silêncio da rua, dormi todo o sono que as noites de Florença me fizeram acumular.


um minuto de contato, por Sergia A.


A cidade me surpreendeu enormemente. Ao cheiro do pão e do azeite se acrescenta o do chocolate, que invadiu os calçadões. Além do olfato, outros estímulos atiçam meus sentidos. Foi assim que uma tarde me trouxe de volta os primeiros anos de universidade. Um tempo de muita esperança, de acreditar que um mundo sombrio poderia ser pintado em novas cores. Foi muito bom sentar na praça, despreocupadamente, e observar gente jovem a provocar os transeuntes. Ouvir os sons de idiomas diversos convivendo alegremente. Doar, ainda que à distância, um minuto do meu olhar. Voltei a sentir leveza, e começo a compreender o que me trouxe até aqui. Engraçado é que só agora, ao te escrever, me dou conta de que o acaso me ofereceu, naquela tarde, a preparação necessária para a visita à mística Assis. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Sobre ondas e conexões à toa


Além de mim, fora de mim, estava o universo imenso,
que existe independentemente dos seres humanos
e que se nos apresenta como um enorme e eterno enigma,
em parte acessível à nossa observação e ao nosso pensamento.
A contemplação desse universo acenava-me como uma força libertadora.


(Albert Einstein in Notas Autobiográficas)


Sidi Guariach/ Flicrk – CC BY 2.0, in Revista Ciência Hoje online, de 02/08/2013  



Não faço jejum, mas vivo a admirar a coragem de quem chacoalha certezas. Foi o que me veio à mente ao ver, pela TV, o chefe da igreja católica no aeroporto de Havana em plena quaresma. Sim, a endemoninhada ilha de Cuba é palco para um encontro de igrejas. Sim, não enlouqueci. É só o tempo impulsionando as voltas do mundo.

Na mesma tarde, em sequência na TV, escuto economistas ortodoxos dissecando a crise econômica. Sim, já admitem que o baixo ciclo de crescimento que se abateu sobre terras tupiniquins não é privilégio de nossa alardeada incompetência. Sim, existe a China e uma onda de migrantes derrubando cercas Europa afora. Sim, não enlouqueci. É só o tempo impondo ao mundo um novo pensar.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Solidão



o violinista, cattedrale di San Lorenzo/Genova - por Sergia A.

sobre as cordas o arco
sacia de agudos silêncios
o vazio da tarde

domingo, 17 de janeiro de 2016

Cartas da Itália: Florença


Si tuviese lector, más largo espacio
para escribir, en parte cantaría
de aquel dulce beber que nunca sacia; 


mas como están completos ya los pliegos
que al cántico segundo destinaba,
no me deja seguir del arte el freno. 

De aquel agua santísima volví
transformado como una planta nueva
con un nuevo follaje renovada,

puro y dispuesto a alzarme a las estrellas.

(Dante Alighieri, Canto XXXIII de Purgatório in A Divina Comédia)




entrada, por Sergia A.

Florença, 14/10/2015

Querida L.

Uma linha direta, menos de uma hora de trem e cá estou antes do meio dia. A ordem é largar malas e curvar-me de espanto logo na primeira esquina. Visão que tento te repassar nas imagens acima - uma ligeira ideia da riqueza de detalhes, cores, e rumores que o berço do renascimento espontaneamente oferece de entrada. 

o verde, por Sergia A.

Fiquei em dúvida se devia escrever na identificação de local Florença ou Toscana (a região). Apesar da certeza de que não seria desperdício ficar perambulando entre grandes mestres e jovens pintores de aquarela todos esses dias, resolvi visitar os arredores em dias alternados. E a região me encanta e confirma a expectativa criada pelos filmes e livros que a tornam ao mesmo tempo familiar e desejada. No entanto, o ar de Firenzi me toca a ponto de relevar as seis noites mal dormidas e a reação alérgica do meu corpo aos seres minúsculos e invisíveis que se escondem nos prédios antigos.




Fonte de Netuno - Bartolomeo Ammannati (1559), por Sergia A.

Sim, hospedei-me no centro histórico, rodeada de Igrejas e a poucos metros da Piazza del Duomo. Sabe aquelas portas de madeira enormes, pesadas, que rangem para encher de suspense as cenas de filme? Pois é por uma delas que tenho acesso à minha acomodação. Os anfitriões são simpáticos, mas o lugar é assombroso. Lá fora a cidade não dorme e os sinos repicam a cada hora. Talvez os que vêm até aqui entendem que dormir seja deixar escapar muito do que se pode explorar desta preciosa relação espaço/tempo. Aqui dentro também não durmo, escuto a música e as vozes alteradas das ruas, e fico a imaginar as vidas que por aqui passam por séculos e séculos e séculos. Aproveito, assim, a última noite para te enviar alguma coisa da beleza desses dias chuvosos, frios e arrebatadores (que mais eu podia desejar?)


o Arno a ponte, por Sergia A.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Canto de agradecer




dia de reis, por Sergia A.


Há na tua lente
sem truques
nem filtros
pele
vivida sob o sol
rugas
marcando olhares
e risos
há sob os óculos
bolsas
de noites insones.
Na tua lente
sem reparos digitais
a luz escreve
tempo
em corpo de gente

sábado, 2 de janeiro de 2016

Há de ser



o botão, por Sergia A.


Não precisa ser 
novo o ano
para que se renove o olhar
dizem-me as letras 
cansadas de vícios
mas eis que são novos
o ano e o olhar
ainda que envelhecidos 
de tanto renascer