terça-feira, 18 de novembro de 2014

Advento IV


Somos filhos da época 
e a época é política. 

Todas as tuas, nossas, vossas coisas 
diurnas e noturnas, 
são coisas políticas. 

(Wislawa Szymborska, in Filhos da época – Poemas p.77 – trad. Regina Przybycien) 


A água, por Sergia A.


Novembro é lindo! Vivo repetindo pelos cantos. Ecoam trovões para afugentar o calor das tardes infernais. Isso, por si só, já me basta. Sem prejuízo das razões cantadas em outros novembros. Assentada a poeira, posso aspirar o cheiro do ar ainda úmido. Descobrir nas nuvens as nuanças do cinza. No intervalo entre uma palavra e outra fechar os olhos e sonhar.

No entanto, há no ar de novembro mais que o cheiro exalado pelas gotas que molham a terra seca. Inconformados com os rumos que o país deseja seguir (demonstrado nas urnas) golpistas mancham as ruas destilando um ódio gratuito. Vermelho vira cor proibida. Dobrar à esquerda um atentado ao pudor. Enquanto os derrotados, cegos de desejo, flertam com o fascismo na tentativa de abocanhar o que, por direito, não é seu. 

É assim que plebiscito ou consulta popular (dispositivos comuns nas grandes democracias do mundo) se torna sinônimo de “revolução bolivariana”. Que uma proposta de reforma política que elimine o financiamento empresarial de campanhas (berço de toda sorte de corrupção e influência do poder econômico nos pleitos eleitorais) vira tentativa de impor uma ditadura comunista. Que a investigação de um esquema de corrupção ganha ares de terceiro turno. E que velhas raposas, sem memória, se mostram surpresas e se dizem envergonhadas da roupa suja que ora se escancara. 

Contudo, parece ser dessa poeira densa, lavada por novembro, que saltam antigas questões. Bem conhecidas, viviam a flutuar entre uma tempestade e outra. A direita reage furiosamente ao ver escorrer por entre os dedos séculos de privilégios. A esquerda se deslumbra diante do poder, e paga um alto preço para lá se manter. Esquece que o teto é de vidro  e que seus erros não serão perdoados. O embate traz à tona vozes distantes e sofridas, não mais silenciadas, porque descobriram o gosto de serem ouvidas. 

Olho para gotas deslizantes e encontro o argumento. Transparência. Sim esta parece ser a palavra que o momento exige. Necessária para que a lama não retorne das galerias, e siga, enfim, o seu destino. Que a chuva desta época seja intensa. Amanhã, quando o céu estiver limpo e as ruas enxutas, quem sabe as preencheremos com um alegre e multicolorido cantar.

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