quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A vida lamentará por nós dois


Senhor eu não tenho a sua fé,
e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar escravidão e um prato de feijão com arroz


[Claudio Russo, Moacyr Luz, Aníbal, Jurandir 
e Dona Zezé in samba-enredo da Paraíso de Tuiuti, 2018]



carnaval, por Sergia A.



É difícil escrever na quarta-feira de cinzas, convenhamos, mas é preciso cantar, entre restos de confetes e serpentinas, as reminiscências: em frente à TV com uma chuva torrencial lá fora, eu só conseguia gritar genial! genial! genial! desliguei... não queria ver ou ouvir mais nada, aquelas imagens me bastavam. Serenei, consegui dormir, tranquila, com um alívio na angústia que me persegue não sem antes anotar, eufórica, alguns rabiscos.



Dona Zilá na saída de sua casa no Morro do Tuiuti. Foto: Mídia NINJA
Acordo bem. Olho pela janela a cidade que ainda deixa escorrer a chuva. Mudou algo em nossa realidade? Não, aparentemente. No entanto algo me diz que não estou só, que muitos se esforçam e compreendem as raízes da nossa divisão, do nosso eterno futuro distante. E como é gratificante perceber que aquele povo na arquibancada do sambódromo, e nos termômetros enlouquecidos das redes sociais entende que somos um país historicamente dividido. Sim, ultrapassamos a desonestidade manipulatória que tentou levar aos ingênuos a ideia de que nos dividíamos entre coxinhas e mortadelas... E que bom que isso vem pela arte. A criatividade carnavalesca nos mostra que estamos além... muito além na compreensão da perpetuação dos valores de uma sociedade escravocrata que, por puro conservadorismo, não aceita nenhum sinal de mudança.

Daí, talvez, vem a minha tranquilidade e confiança na sabedoria popular. O carnaval me diz, que de pouco valeram as capas raivosas das grandes revistas, os discursos inflamados dos que se julgam deuses, o ataque frontal à democracia e à soberania popular patrocinado pela elite financeira... porque o que nos toca de verdade é o que toca o fundo da alma. Aquilo que se reconhece em pontos nevrálgicos do nosso corpo, nas histórias que ninaram nosso sono inocente. Sim é desse fundo místico, sagrado, do balanço miscigenado do meu corpo que consigo enxergar a genialidade de um carnavalesco, sua equipe e foliões que mostram com a simplicidade dos não eruditos que o mal que se interpõe no nosso caminho está na exploração do homem pelo homem que carregamos dos nossos ancestrais e não conseguimos dela nos libertar. Abolimos uma forma de escravidão mas criamos outra adequada a cada tempo, sob os aplausos do progresso, em uma espiral que sabemos onde vai dar, diria Marx.

Então, se optamos pela visão separatista (o inferno é o outro, diria Nietzsche) e de permanência desse modelo perverso de desigualdade vale perguntar: quem ganha? quem perde? Vale sugerir uma resposta: a vida lamentará pelos dois.


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