domingo, 26 de março de 2017

Roupa de domingo




verde-amarelo mergulhado no azul



                      Veste o domingo
                      o desejo
                      de que, de repente,
                      as coisas brilhem
                      em viscosa harmonia


                      nos púlpitos, o sermão
                      desdizendo mistérios
                      ou no parque os passeios
                      de mãos dadas com a contradição

                      em volta da mesa, o sorriso
                      abafando gritos
                      ou nas ruas bicicletas
                      esmagando no pedalo a solidão

                      veste o domingo
                      um desejo
                      de esquecer o engelhado dos dias
                      e na roupa passada a ferro
                      a redenção


quinta-feira, 16 de março de 2017

Em busca de um verso





um barco, por Sergia A.


            Jogo a âncora
            aporto em balanço
            ao ritmo das ondas
            ao vento
            
            sob a timidez do sol
            nas entrelinhas remo 
            encrespando 
            as águas mornas
            
            sob a névoa 
            que aos poucos se dissipa
            vencida a distância 
            distingo na tua forma
            o farol

sexta-feira, 10 de março de 2017

Da necessidade de ser vigilante



Tirem seus rosários
dos meus ovários

[grito/cartazes nas manifestações de rua]




o retrato de Virginia W., por Sergia A.



Os temas nos escolhem, alguém disse antes de mim e eu repito porque sinto a força de expulsão quando eles teimam em fluir. Alguns se repetem. São insistentes, persistentes, como se o que se disse uma vez tenha ficado aquém, muito aquém de todas as suas possibilidades. Este me persegue, e eu não posso fugir ainda que passado o oito de março. Ou, talvez, exatamente por ter vivido este oito de março.

Cresci tendo mulheres como referência, em casa, na escola, na rua e até mesmo na Igreja. Havia as santas, mas foi a imagem de Joana D'Arc que eu ganhei de presente. Havia a severidade do discurso religioso, que fecha os olhos para a importância da presença de Maria Madalena nas parábolas de Cristo, mas eram as freiras que vinham de um mundo distante e mantinham com rigor o funcionamento da escola. Uma delas me ensinou a gostar de números. Foi por elas que aprendi que o mundo se estendia além das fronteiras da minha aldeia, e que ultrapassá-las era coisa de mulher.

Talvez por isso este tempo de retrocessos me chegue com tanta estranheza. Quando jovem estudante de engenharia ou na vida adulta trabalhando na área financeira, sentia na pele o peso da desigualdade. Embora em termos de remuneração isso não existisse na empresa que me empregava, o preenchimento de cargos gerenciais era predominantemente masculino. No entanto, mais que a ilusão de que o mérito individual a tudo vencia havia uma perspectiva de futuro, havia discussões sobre equidade e acreditava-se que a superação do estigma da competição entre maternidade e carreira seria uma questão de tempo. Assim é que, nas horas vagas, era possível ler a biografia de Rosa de Luxemburgo ou de Olga Benário. Encantar-se com o que escrevia Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, Clarice Lispector. E se isso fosse pouco, ainda podíamos admirar a ousadia de Pagu, Nina Simone e Leila Diniz.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Das conexões




rede vazia, por Sergia A.



Diz-se do verbo vazar: 

transitivo direto, intransitivo, pronominal. fazer ou deixar sair o conteúdo. esvaziar(-se). correr. fazer correr. deixar escapar. escapar(-se). 


ligação perigosa com vazio. do latim vacivus, o que está desprovido. de onde também deriva vaidade. qualidade do que é vão. sem consistência, feito espaço oco. vazado. vazantes.

anulação do desejo. sagrados sigilos. revelação. vestígios do humano que já não sabemos ser.