quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

2017: entre o prazer e a dor


a máquina que o pôs em movimento é alheia a ele,
às vezes alheia ao tempo em que ele vive. 


[Abril Despedaçado, p.93 - Ismail Kadaré, tradução do albanês de Bernardo Joffily.]



flores secas, por Sergia A.



Vi o filme Abril Despedaçado (2001) antes de ler o livro do albanês Ismail Kadaré. Já tinha certo apreço pelo conteúdo literário encontrado na linguagem de Walter Salles em filmes anteriores como Terra Estrangeira (1995) e Central do Brasil (1998). Possivelmente parte da alegria de sentir algo novo no cinema brasileiro que andava em baixa. Mas não conhecia Kadaré e nem sua escrita instigante. Portanto as imagens, a princípio, me foram fornecidas pela bela fotografia de Walter Carvalho. Imagens que, inexplicavelmente, encontraram eco na minha alma. Tento explicar: não se tratava apenas de ver representado na tela grande o belo extraído da natureza em luta constante contra a morte, que nos acostumamos a ver nos filmes em que o espaço nordestino é tema determinante do enredo, como Terra Seca ou Deus e o Diabo na Terra do Sol. Paisagem que toca e fala muito de perto aos que nasceram ou viveram algum tempo de suas vidas na aridez do sertão. A mudança de foco do drama social para o drama interior que antecede a escolha entre o prazer e a dor era como uma ponta de espinho cravada no pé, a cada passo uma fisgada a me dizer que estava ali. Sem outra opção, devorei o livro.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Demolição




adobe, por Sergia A.



Das paredes o marrom do adobe escorreu cedendo à insistência das chuvas, como o sangue amarelado das mariposas. Trincas se fizeram brechas na fragilidade da arcaica estrutura revestida de austeridade, olhares severos e não ditos.


Já não cabiam reparos ao anúncio de inevitável rompimento. Restou no chão sobre escombros o arrastar dos passos em fuga, fatigados de peso e imobilidade. Carregando nas cicatrizes leveza e movimento.


sábado, 11 de novembro de 2017

Montagem do dia



assento à janela, por Sergia A.




Tomo posse de cantos, como herdeira do que em sonho foi meu. Planto sementes como garantia. Cedo à insistência do sol. Do ben-te-vi e do café rompendo os dias. Desperto a languidez do transe que cedo me encanta.

Na janela namoro uma brisa acanhada, aspirando ingenuidade. Antes que a boca do poema salte das páginas e, por inteiro, me devore.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Entre o ódio e o medo: a esperança



Nos abrimos para que homens e mulheres escutem
E nos dizemos: Olha, não tenhas medo, sê cândido e anuncia corpo e alma,
Demora-te um pouco e depois segue, sê generoso, prudente, puro, magnético,
E o que tu exalas poderá voltar, como voltam as estações
E poderá ser pleno, como as estações.


[Walt Whitman in Por esses Estados, tradução de Ramsés Ramos]
[Folhas da Relva p.23]



templo à luz, por Sergia A.



Por esses tempos sombrios, frequentemente me envolvo em "tretas". Não aprendi a calar diante do que fere meus olhos ou ouvidos. E depois trago a convicção de que se a internet e as redes sociais deram voz aos imbecis, como disse Umberto Eco, é preciso que vozes sensatas apareçam para equilibrar os ruídos e alimentar a esperança.

Foi assim que ao defender o estado democrático e criticar uma intervenção policial autoritária em uma universidade, ouvi um questionamento sobre "o ódio do pessoal da esquerda a uma farda"  e os "calafrios" diante de armas. Não podendo responder pelos outros mas apenas por mim, respondi que não sou movida pelo ódio. E, não pude evitar que daí surgissem duas ideias, quase que de imediato. A primeira: se até aquele momento eu não tinha me assumido como "alguém de esquerda", e a defesa da democracia contra o arbítrio assim me identificava, pontos para a Esquerda. A segunda: esta seria uma boa oportunidade para deixar de lado a insinuação de covardia contida no questionamento, e examinar o meu medo de armas. Este sim, um sentimento verdadeiro. Neste ponto ele estava certo. Tenho razões e argumentos fortes contra o uso indiscriminado de armas, principalmente quando são usadas com o claro intuito de intimidação como fora o caso que deu início à discussão.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Enquanto não murcharem as flores




Geleiras vão derreter
Estrelas vão se apagar
E eu pensando em ter você
Pelo tempo que durar

[Adriana Calcanhotto e Marisa Monte]



flores à venda, por Sergia A.



A frase Mrs. Dalloway said she would buy the flowers herself. usada por Virginia Woolf para dar início ao Mrs. Dalloway, complementada pela justificativa que finaliza o parágrafo com um pensamento da personagem Clarissa Dalloway : what a morning - fresh as if issued to children on a beach.[1] me conquistou desde a primeira vez que tentei ler o romance. E eu não sei, sinceramente, dizer o porquê. Tocou-me, e para mim basta. Lembro disso agora porque um dia desses uma senhora, ao me ver ver com uma braçada de flores no supermercado (sim, eles vendem flores!) me fez parar para responder-lhe duas questões: quanto custava e quanto tempo durava. Atordoada, fiquei sem respostas porque nenhuma das duas questões tinham sido consideradas quando resolvi levá-las comigo.

Não pensem vocês que sou rica ou do tipo esbanjadora. Tenho apenas o suficiente para viver e controlo bem as minhas contas, mas me permito comprar flores. Não costumo dar festas ou receber amigos com pompas. Ainda assim, compro flores. Talvez pelo prazer que elas me proporcionam ao me dizerem, com delicadeza e cores, que estão vivas, que estão ao meu lado e querem me fazer me sentir bem pelo tempo que viverem. 

domingo, 8 de outubro de 2017

Canto para a lua nova




riso enlarguecido, por Sergia A.


Ela cantava para sua pequena em noites frias, acomodando seus corpos aquecidos sob as cobertas. Era preciso proteger a pele macia  e o brilho do olho do avanço do vento noturno, impetuoso, que corta e cega. 

O tempo se repete. Não cansa de ser ontem. À pequena crescida a repetição se faz em canto. Como se no tamborilar dos dedos, na cadência das palavras, os céus ouvissem o ecoar de um pranto:

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Brava gente brasileira



A minha alma tá armada
E apontada para a cara
Do sossego
Pois paz sem voz, Paz sem voz 
Não é paz é medo

[Marcelo Yuka, in Minha alma (a paz que não quero)]





Amarelo sobre fundo azul, por Sergia A.



Uma das minhas meninas quando adolescente amava bandas de rock, pop-rock e sei lá mais o que, como a maioria das meninas da sua idade. Aos domingos, quando se sentia livre da agenda estressante que eu (uma mãe severa) lhe impunha durante a semana se trancava no quarto, ligava o som em volume alto e ficava pulando em cima da cama repetindo a plenos pulmões um refrão do Rapa: 
"Me abrace e me dê um beijo/ Faça um filho comigo/ Mas não me deixe sentar na poltrona no dia de domingo,/ Domingo/ Procurando novas drogas de aluguel/ Nesse vídeo coagido/ É pela paz que eu não quero seguir admitindo/ É pela paz que eu não quero, seguir/ É pela paz que eu não quero, seguir/ É pela paz que eu não quero, seguir/ Admitindo."  
Minha cabeça analítica e seduzida facilmente por veios poéticos, do lado de fora, ouvia e tentava decifrar aqueles recados enigmáticos que definiam uma paz não desejada.

Isto me veio à lembrança nesta manhã de nuvens esparsas em um céu de setembro. É feriado nacional. Minha imaginação está agora povoada de famílias brasileiras sentadas nos sofás se drogando via TV, jornais, revistas ou portais da grande mídia na internet. Drogas adormecedoras que injetam em nossa mente a hipocrisia, como se quisessem testar a nossa tão festejada índole pacífica. Insuflados por ela fomos capazes de derrubar uma presidenta por um crime fiscal. Um golpe de estado em que muitos nem sequer se deram conta que aquilo significava um atentado à nossa frágil democracia. Repetia-se em doses diárias que as instituições estavam funcionando.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Com olhos de Caetano




I -  Sobre a vida secreta das pipas



A pipa, Sergia A.

não é sol de dezembro
não tenho bolsos ou mãos
ainda assim
caminho contra o vento...
por que não?




II - Sobre a vida secreta das flores

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Na mesma estrofe



nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

(Paulo Leminski, in CAPRICHOS & RELAXOS p.86 - 1985)




o rio na janela, por Sergia A.


No longo trajeto entre o Ahu e o aeroporto, o taxista puxa assunto para quebrar o silêncio da manhã gelada:
- Retornando para casa?
- Sim.
- Para Paris? 
Surpreendo-me com a ousadia da pergunta, já que não tenho traços e nem sotaque franceses. Olho para minha roupa e contenho-me para não dar uma risada.

- Não. Para Teresina, no Piauí  - Respondo no tom explicativo que me habituei a falar, para evitar o constrangimento em uma questão geográfica simples: as capitais do nordeste que muita gente boa do sul e do sudeste faz questão de dizer que desconhece.

- E o que tem de bom por lá?
- Teresina é uma cidade linda, o único defeito é aquele calor de rachar. - Dou a resposta clássica, treinada, para evitar o comentário sarcástico que normalmente vem em seguida. 

sábado, 15 de julho de 2017

Sentinela




linha melódica, por Sergia A.





                     há no canto melancólico
                     entre pausas breves
                     o anúncio 
                     da persistência do sol
                     do revolver de conchas e areia
                     sob o bater da onda
                     encrespada pelo vento
                     do movimento incontido do mar
                     ainda que muros e linhas elétricas
                     cerquem o universo do medo
                     apressando o anoitecer
                     ou acinzentando
                     silenciosamente 
                     o olhar


sexta-feira, 30 de junho de 2017

Sobre olhares, gatos e homens



O olhar propicia o enxergar nítido e um olho que realmente enxerga!

(E.T.A. Hoffmann in A janela de esquina do meu primo, 1822
tradução de Maria Aparecida Barbosa)




Meeting, instalação de Wang Shugang em Bamberg, por Sergia A.



Das minhas andanças aprendi que boa parte do encantamento das viagens está no olhar inaugural, no êxtase de ver as coisas pela primeira vez e dali iniciar um processo de conhecimento. Mesmo quando a paisagem já se tornou familiar por vídeos, fotografias, livros, postais e descrições de amigos há sempre uma novidade para o olhar que se desloca. Prestamos atenção em tudo porque o novo nos desperta. Apesar da noite mal dormida e de um dia inteiro entre subidas e descidas de ônibus e degraus, fui seduzida por esse olhar sobre Bamberg.

A luz do dia se apagava entre nuvens acinzentadas sobre a Schönleinzplatz quando uma instalação atraiu meu olhar pela estranheza. Sete homens moldados em fibra de vidro acocorados em círculo. As mãos sobrepostas diante de si em atitude de contemplação profunda, ou preparando-se para um salto. A depender do ponto de vista de quem lhes dirige o olhar. Intrigada, busco e descubro que se tratava da obra Meeting, do artista chinês Wang Shugang. A princípio uma instalação montada em Heiligendammi no ano de 2007 por ocasião da reunião do G-8, transferida anos depois para aquele local para saudar a passagem do Dalai Lama pela cidade. 

domingo, 11 de junho de 2017

O futuro dentro de um livro [ou, um melro na janela]


Um lindo melro abre-me os olhos
de manhã. Canta no verde dos ciprestes
a canção do amor de outrora

Um lindo melro apaga-me os sonhos
pela manhã. Eu sentada no meio
da luz estou mesmo acordada.

(Ulla Hahn in Despertar, tradução de João Barrento)




Janela para os Alpes, por Sergia A.


Em uma viagem ao sul da Alemanha, não há como não ter contato com vida e obra de Ludwig II (1845-1886), o rei louco da Baviera. Claro que sua presença foi sentida em praticamente toda a jornada, mas a ele dediquei um dia de caminhada, escadarias, e algumas horas de leitura rápida. O dia foi intenso e de grande aprendizado sobre a natureza humana e sobre o valor da arte e dos livros, quando esses tocam profundamente a sensibilidade das pessoas. 

O cisne de pedra, por Sergia A.
As visitas guiadas foram a apenas dois castelos. O mínimo, mas o máximo que o tempo podia proporcionar. Ainda assim suficientes para encantar-me não só com a imponência arquitetônica do Schloss Neuschwanstein erguido sobre os Alpes ou a riqueza de detalhes do Schloss Linderhof, como também com a onipresença das lendas medievais que deram origem às óperas de Wagner (de quem Ludwig II foi patrono) e alimentaram largamente a literatura alemã. Desde o nome do primeiro: Novo Cisne de Pedra, em tradução literal - referência à ópera que reconta a lenda do Cavaleiro do Cisne, até a existência de uma gruta no segundo (Gruta de Vênus) - uma caverna cravada nas rochas onde aconteciam performances de óperas e peças teatrais. 

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Do caminho



The journey, not the destination, becomes a source of wonder.

(Loreena McKennitt in The book of Secrets)




Primavera, por Sergia A.



Viajar é parte de mim. Talvez, um traço herdado do meu pai que em sua vida curta foi de mascate a dono de caminhão para transporte de cargas. Boa parte do nosso tempo foi consumido acumulando estradas e jornadas. Ele buscando sustento, eu o desperdício em dias de folga do trabalho formal, e ambos ganhando a vida. Digo trabalho formal para diferenciá-lo da arte de escrever a que hoje me dedico. Como se a escrita não fosse trabalhosa. Mas, é que o lado prazer/necessidade se desvia da minha compreensão da palavra trabalho. E o viajar, como parte da mesma arte, ganha nova roupagem. O certo é que, de um modo ou de outro, como no tempo do meu pai as viagens me alimentam, me fortalecem e me afastam do desencanto oferecendo-me novas possibilidades.

Contudo, de uns tempos para cá, já não faço grandes planos. Tenho uma queda pelas coisas que me acontecem por acaso. Foi assim que entrei em uma agência de viagens para montar um roteiro, e recebi uma oferta: a última vaga para um grupo relativamente pequeno que se destinava a cidades medievais ao Sul da Alemanha. Isso ao mesmo tempo em que acontecia a exposição Das brasilianische Weltkulturerbe Serra da Capivara – älteste Siedlungsspuren in Amerika? (exposição fotográfica e exibição de documentário sobre os achados arqueológicos e a região da Serra da Capivara-PI, promovidas pela Embaixada Brasileira e o Instituto de Arqueologia Alemão). Ah, o acaso! Ajustamos. Fechamos.

sábado, 6 de maio de 2017

Confissão em tarde de outono





ao vento, por Sergia A.



acato ondas, mansas quando convém 
intempestivas quando açoita o vento

firmo o tronco diante delas enraizando-me
entre grãos de areia banhados de espuma.

absorvo acessos em fases revoltas entre calmarias
anima-me o brilho a refletir cores de nuvens e luar

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Sobre desvios e ilusões



a margem, por Sergia A.


antes de alcançar a altura do espelho, foi na água que se viu refletida. contam que não se conteve. em um salto buscou o abraço na lâmina fria para encontrar sobre a pele as marcas do apressado resgate. não fazia ideia de si. era no outro, ao alcance da mão, que se reconhecia.

cresceu sem água na torneira, ou ducha no banheiro. do olho d'água lhe chegava os goles. da cacimba e das chuvas os banhos. do recolhido nas bicas dos telhados, a alvura dos lençóis. da aurora, o véu sobre o corpo delineando contornos em espelho de cristal. 


sexta-feira, 7 de abril de 2017

Acalanto de Primavera



Aos
anjos de Khan Sheikhoun


alegria suspensa, por Sergia A.




Velo teu sono, ó lua! Clamo por teu nome, ó adorado! quem te trouxe a mim em dias de vida suspensa? abrigo-te dos roncos que inquietam a inocência. amparo-te na certeza das paredes intactas, ou do sangue que não se esvai. 

sopra a brisa e juntos respiramos o medo, disfarçado de alívio. inspiramos o silêncio que sufoca o ar, exalando a noite sobre a manhã de abril. 

domingo, 26 de março de 2017

Roupa de domingo




verde-amarelo mergulhado no azul



                      Veste o domingo
                      o desejo
                      de que, de repente,
                      as coisas brilhem
                      em viscosa harmonia


                      nos púlpitos, o sermão
                      desdizendo mistérios
                      ou no parque os passeios
                      de mãos dadas com a contradição

                      em volta da mesa, o sorriso
                      abafando gritos
                      ou nas ruas bicicletas
                      esmagando no pedalo a solidão

                      veste o domingo
                      um desejo
                      de esquecer o engelhado dos dias
                      e na roupa passada a ferro
                      a redenção


quinta-feira, 16 de março de 2017

Em busca de um verso





um barco, por Sergia A.


            Jogo a âncora
            aporto em balanço
            ao ritmo das ondas
            ao vento
            
            sob a timidez do sol
            nas entrelinhas remo 
            encrespando 
            as águas mornas
            
            sob a névoa 
            que aos poucos se dissipa
            vencida a distância 
            distingo na tua forma
            o farol

sexta-feira, 10 de março de 2017

Da necessidade de ser vigilante



Tirem seus rosários
dos meus ovários

[grito/cartazes nas manifestações de rua]




o retrato de Virginia W., por Sergia A.



Os temas nos escolhem, alguém disse antes de mim e eu repito porque sinto a força de expulsão quando eles teimam em fluir. Alguns se repetem. São insistentes, persistentes, como se o que se disse uma vez tenha ficado aquém, muito aquém de todas as suas possibilidades. Este me persegue, e eu não posso fugir ainda que passado o oito de março. Ou, talvez, exatamente por ter vivido este oito de março.

Cresci tendo mulheres como referência, em casa, na escola, na rua e até mesmo na Igreja. Havia as santas, mas foi a imagem de Joana D'Arc que eu ganhei de presente. Havia a severidade do discurso religioso, que fecha os olhos para a importância da presença de Maria Madalena nas parábolas de Cristo, mas eram as freiras que vinham de um mundo distante e mantinham com rigor o funcionamento da escola. Uma delas me ensinou a gostar de números. Foi por elas que aprendi que o mundo se estendia além das fronteiras da minha aldeia, e que ultrapassá-las era coisa de mulher.

Talvez por isso este tempo de retrocessos me chegue com tanta estranheza. Quando jovem estudante de engenharia ou na vida adulta trabalhando na área financeira, sentia na pele o peso da desigualdade. Embora em termos de remuneração isso não existisse na empresa que me empregava, o preenchimento de cargos gerenciais era predominantemente masculino. No entanto, mais que a ilusão de que o mérito individual a tudo vencia havia uma perspectiva de futuro, havia discussões sobre equidade e acreditava-se que a superação do estigma da competição entre maternidade e carreira seria uma questão de tempo. Assim é que, nas horas vagas, era possível ler a biografia de Rosa de Luxemburgo ou de Olga Benário. Encantar-se com o que escrevia Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, Clarice Lispector. E se isso fosse pouco, ainda podíamos admirar a ousadia de Pagu, Nina Simone e Leila Diniz.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Das conexões




rede vazia, por Sergia A.



Diz-se do verbo vazar: 

transitivo direto, intransitivo, pronominal. fazer ou deixar sair o conteúdo. esvaziar(-se). correr. fazer correr. deixar escapar. escapar(-se). 


ligação perigosa com vazio. do latim vacivus, o que está desprovido. de onde também deriva vaidade. qualidade do que é vão. sem consistência, feito espaço oco. vazado. vazantes.

anulação do desejo. sagrados sigilos. revelação. vestígios do humano que já não sabemos ser.


sábado, 21 de janeiro de 2017

O último voo




Espelho azul, por Sergia A.
Vila Itaqui - Praia do Coqueiro/Luís Correia-PI



                                Já não sentia sob os pés
                                a areia
                                era de nuvens
                                o longo caminho

                                eis que no horizonte
                                um oceano se estendia
                                antes do céu
                                o anteparo
                                tudo aos poucos revelava
                                como findável travessia
                                de formas inúteis
                                (corpos, posses e certezas)
                                ou de uma realidade
                                que no espelho se invertia.



[Vila Itaqui, 18/01/2017]