quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Moral em tempos de cólera



Qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra "bom" nas diversas línguas?
Então, descobri que esta palavra em todas as línguas deriva de uma mesma
transformação conceitual; descobri que, em toda parte "nobre", "aristocrático",
no sentido de ordem social, é o conceito fundamental, a partir do qual se desenvolve
necessariamente "bom" no sentido de "que possui uma alma de natureza elevada",
de que "possui uma alma privilegiada". Esse desenvolvimento se efetua sempre
paralelamente a outro que acaba por evoluir de "comum", "plebeu" "baixo" para
o conceito de "mau".
O exemplo mais eloquente desta última transformação é a palavra alemã
sclecht (mau), que é idêntica à palavra schlicht (simples);

[Friedrich Nietzsche in Genealogia da Moral p.27]



Xanana: cor e resistência, por Sergia A.


Se 2016 nos trouxe alguma lição, essa está, sem dúvida, relacionada ao quanto crenças pessoais afetam o julgamento de fatos. A Oxford Dictionairies elegeu como termo do ano o neologismo "pós-verdade" (do inglês post-truth). Em suas palavras, trata-se de um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Nada mais perfeito do que a língua e sua flexibilidade ou possibilidade de adaptação para nos definir a cada novo momento.

Há apenas seis anos (2010) 84% da população brasileira acreditava que o país estava melhor. Isso é um fato, um sentimento respaldado por números. Em 2008 uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontava que, pela primeira vez na história do Brasil, mais da metade dos habitantes do país pertenciam à classe média. Menos de uma década depois, boa parte da mesma população aceita resignadamente e propaga a falácia de que os governos que favoreceram tal façanha arruinaram o país deixando uma herança maldita. Situação que só se resolverá com o sacrifício de pobres e trabalhadores. Fomos hipócritas enquanto o deslumbre das emergentes classes C e D, diante da possibilidade de consumo, alimentava lucros? A alegria pela redução da fome, da injustiça social e da desigualdade era apenas uma resposta à criação de nichos de mercado? Quão vaidosa foi a esquerda no poder, ao fechar os olhos para a velha política de relações promíscuas entre Estado e grandes empresas (especialmente a indústria e a construção civil), acreditando cegamente em um pacto de conciliação de classes? Ou, em que medida o conceito de "bom" e "mau" desliza entre os nossos sentimentos em relação aos apelos do falso moralismo, ou se firma nas nossas crenças volúveis de que a felicidade individual é tudo o que importa?


Um dia desses, em uma das polêmicas que a gente se envolve por não ficar mudo diante do caos, fui julgada e agredida gratuitamente. Explico: gosto de ler portais estrangeiros, para contrabalançar a visão de jornalistas locais contaminada pela polarização política. Não resisti quando RFI Brasil afirmou: "A queda de Dilma não coloca fim na crise, pois Temer é fruto do sistema político tradicional e não corresponde à renovação desejada pela população e pelos investidores". Em um comentário questionei a seriedade do entendimento de que a população brasileira seria ingênua ao ponto de acreditar em "renovação" ao substituir Dilma por uma quadrilha conhecida de longa data. A reação foi imediata, de apoio e de condenação. Natural. Mas juro que uma delas me deixou assustada. Alguém que usava nome e foto de mulher (mas pode ser fake) se deu ao trabalho de catar dados da minha conta no Facebook e usá-los como prova da sua convicção sobre as razões do meu questionamento. Pouco lhe interessava refletir sobre o que estava escrito, ela tinha nas mãos um ás. Por constar entre meus dados o fato de ter sido funcionária de um banco público, o seu tosco julgamento fazia de mim uma pessoa corrupta, que "mamava nas tetas do governo". Logo eu, que entrei no banco por concurso público e vivi anonimamente sem nunca ter ocupado um cargo sequer por indicação política. Minha reação foi de riso, pela lembrança dos meus antigos colegas de trabalho, assumidamente defensores de ideias neoliberais ou de direita, que por extensão eram considerados "esquerdopatas" por um dos seus pares, pelo simples fato de terem um contrato de trabalho com um banco público.

Claro que esse pequeno incidente não tem as proporções que a 'pós-verdade' ganhou no caso da eleição de Donald Trump, no Brexit, no NÃO ao acordo de paz na Colômbia. Mas, dá uma ideia de como isso nos afeta, das pequenas coisas do cotidiano até os grandes acontecimentos do nosso tempo. A agenda política brasileira de 2016 não deixa dúvida de que o impeachment de Dilma Rousseff  se deve, em grande parte, ao maldoso e persistente discurso que associa corrupção e irresponsabilidade fiscal/administrativa aos governos de esquerda, negando fatos contundentes de toda a nossa História. Ficam as perguntas martelando palavras e pensamento. É este um dado novo? ou ele apenas se amplia, ganhando dimensões imensuráveis, pela facilidade e rapidez de comunicação que a internet e redes sociais implantaram?

Em um rápido passeio pela filosofia, literatura, ou pela religião, encontramos pistas para entender a origem do que é visto como virtude, de como tais valores são estabelecidos pela sociedade, modelam o comportamento do indivíduo e esses, por sua vez, os reproduzem. Da mesma forma, não é difícil encontrar, ao longo da história, julgamentos morais se sobrepondo a fatos. A diferença é que a voz de comando se concentrava em poucos. Por outro lado é também neste passeio que descobrimos Sócrates já deixando os atenienses sem graça ao indagar como sabiam se determinada conduta por eles levada adiante era boa ou má. As tragédias de Shakespeare mantém pelos séculos o seu poder de catarse ampliando as leituras possíveis sobre o comportamento humano em nossos dias, ao desafiar nossas certezas sobre onde se situa o bem e o mal. As religiões sacralizam costumes ao insistirem na existência de deuses que os ordenam desde a origem dos tempos, mas sua história está repleta de profetas que questionam tais valores, entre eles o Cristo tão celebrado e tão esquecido em sua essência. Quanto mais lemos, mais perguntas apavoram as noites.

É nas sutilezas da língua (aquelas que, às vezes, se perdem na tradução) que encontramos caminhos para apaziguar ou desassossegar, de vez, o espírito. É sabido e dito pelos linguistas, e eu aqui apenas reproduzo, que o Grego traz duas vogais para pronunciar e grafar a vogal "e". Uma breve, chamada epsilon, e uma longa, chamada eta. Assim, "Ethos" (escrita com a vogal longa - eta) significa costume. Já "ethos" com epsilon significa caráter, temperamento, disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Na última se define portanto, as características de cada um. É nelas que adormecem a determinação sobre quais virtudes e quais vícios seu detentor é capaz de praticar. Ou seja, aquilo que denominamos senso moral ou consciência ética. Tendo a consciência como ponto de partida, constatamos que 2016 nos mostrou um mundo em que as pessoas parecem desconhecer as causas e os objetivos de suas ações. Parece que perdemos a capacidade de avaliar qual atitude é mais adequada para realizar algo bom para nós mesmos e para os outros. Mas, isso se deve apenas ao temperamento do indivíduo? ou é moldado pelo que a sociedade competitiva e egocêntrica estabelece como virtude?

Finda, 2016! é o grito que ecoa nas redes sociais. Findará 2016, no calendário, em poucos dias. No entanto, mais que o tempo, para alcançarmos o futuro a língua impõe uma conjunção condicional: o ano maldito ficará como relíquia da história, se compreendermos que acima do que individualmente consideramos o bem ou o mal, está a necessidade de uma reflexão sobre a origem e o significado desses conceitos. Isso se for nosso desejo ter uma chance de escolha. Se for nosso desejo ver crescerem seres humanos livres, independentes e com capacidade de autodeterminação.



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