sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Sobre mosaicos e percepções



E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade


[Vinícius de Moraes/Carlos Lyra in Marcha de quarta-feira de cinzas]




o estudo, por Sergia A.


O tempo não está para euforias, é certo, mas os dias são de festa e a tristeza me cansa. Ao invés de ficar nos cantos resmungando ando tomando gosto pela arte dos mosaicos. O vaso quebrou? paciência! Vamos juntar e ver o que dá para fazer com os cacos. Partindo deste princípio, o artista plástico Vik Muniz foi além no jogo da percepção visual, com o seu “Lixo Extraordinário” (2010). O documentário mostra o trabalho desenvolvido com catadores de lixo de Duque de Caxias-RJ, e ganhou prêmios no festival de cinema de Berlim (categoria Anistia Internacional) e no Festival de Sundance. Foi no lixão, e com a ajuda de quem dali tira o seu sustento, que ele encontrou matéria prima para produzir algo inusitado, de valor estético e social, revelando todo o poder da criatividade na arte de dar vida nova ao que sobrou.

Desafiada e com o intuito de não me perder em amargura, ainda que com direito a uma taça de espumante, recolho da lama os cacos para compor minha listinha de percepções. Sempre funciona:

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Moral em tempos de cólera



Qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra "bom" nas diversas línguas?
Então, descobri que esta palavra em todas as línguas deriva de uma mesma
transformação conceitual; descobri que, em toda parte "nobre", "aristocrático",
no sentido de ordem social, é o conceito fundamental, a partir do qual se desenvolve
necessariamente "bom" no sentido de "que possui uma alma de natureza elevada",
de que "possui uma alma privilegiada". Esse desenvolvimento se efetua sempre
paralelamente a outro que acaba por evoluir de "comum", "plebeu" "baixo" para
o conceito de "mau".
O exemplo mais eloquente desta última transformação é a palavra alemã
sclecht (mau), que é idêntica à palavra schlicht (simples);

[Friedrich Nietzsche in Genealogia da Moral p.27]



Xanana: cor e resistência, por Sergia A.


Se 2016 nos trouxe alguma lição, essa está, sem dúvida, relacionada ao quanto crenças pessoais afetam o julgamento de fatos. A Oxford Dictionairies elegeu como termo do ano o neologismo "pós-verdade" (do inglês post-truth). Em suas palavras, trata-se de um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Nada mais perfeito do que a língua e sua flexibilidade ou possibilidade de adaptação para nos definir a cada novo momento.

Há apenas seis anos (2010) 84% da população brasileira acreditava que o país estava melhor. Isso é um fato, um sentimento respaldado por números. Em 2008 uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontava que, pela primeira vez na história do Brasil, mais da metade dos habitantes do país pertenciam à classe média. Menos de uma década depois, boa parte da mesma população aceita resignadamente e propaga a falácia de que os governos que favoreceram tal façanha arruinaram o país deixando uma herança maldita. Situação que só se resolverá com o sacrifício de pobres e trabalhadores. Fomos hipócritas enquanto o deslumbre das emergentes classes C e D, diante da possibilidade de consumo, alimentava lucros? A alegria pela redução da fome, da injustiça social e da desigualdade era apenas uma resposta à criação de nichos de mercado? Quão vaidosa foi a esquerda no poder, ao fechar os olhos para a velha política de relações promíscuas entre Estado e grandes empresas (especialmente a indústria e a construção civil), acreditando cegamente em um pacto de conciliação de classes? Ou, em que medida o conceito de "bom" e "mau" desliza entre os nossos sentimentos em relação aos apelos do falso moralismo, ou se firma nas nossas crenças volúveis de que a felicidade individual é tudo o que importa?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Onde termina este mar?



O desafio: traduzir em palavras a leveza e volatilidade da arte da dança, aliada ao ritmo e ao balanço do mar. Ler Cecília Meireles foi o que me veio à mente de imediato. Depois lembrei de uma cena de férias em família. Estávamos na praia. Enquanto os outros enchiam baldes de areia, uma delas se posta em frente ao mar. Com as ondas beijando os pés cruza os braços, e do alto dos seus quatro anos me lança um olhar pensativo e diz: "onde termina este mar?"

Foi me dado o fio. Eis o texto.




ensaio geral, por Sergia A. 




Mar

Foi desde sempre o mar, sopra Cecília Meireles ao meu ouvido. Como brisa cálida que o movimento das ondas derrama sobre a areia, desalinhando cabelos e nos deixando mudos. Dele viemos, sopra a ciência depurando racionalmente nossa origem. A ele nos voltamos, sempre, olhares petrificados em contemplação ou no exercício aventureiro da arte de viver.

sábado, 3 de dezembro de 2016

A festa do silêncio



Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas. 


[António Ramos Rosa, em Volante Verde, 1986] 
 



gotas tímidas, por Sergia A.



Li por acaso uma crônica que publiquei há dois anos [Advento IV]. É desolador constatar, que de lá para cá, em nada avançamos. Ao contrário, fomos arremessados por ventos furiosos para uma ponte que nos leva ao pior do passado. É a ela que retorno quando toda a lama, o lobby e a lambaça, jogados no ventilador por esses dias, nos entristecem mas apagam as aparências e clareiam o caminho.

Depois de dois anos de batalhas entre 'coxinhas' e 'mortadelas', somos alçados ao posto de espectadores manipulados da guerra entre políticos corruptos e paladinos da justiça e da moral. Misturam-se em um jogo sujo, estufam o peito ensimesmados, enquanto a economia do país se esfacela. As forças ligadas aos grupos financeiros tiram proveito do caos e armam seu bote para manter lucros e privilégios, enquanto a vida das pessoas escoa pelo ralo. Em minhas andanças pelo olhar do outro, vejo a volta das festas sem alegria. Vejo a incerteza sobre a escola do filho no ano que vem. Se o salário será suficiente para o plano de saúde. Ou, se sequer haverá salários. Vejo o medo diante da violência que campeia pelas ruas. A dos marginais e a da mão poderosa do Estado militarizado. De certeza apenas a angustia existencial que nos persegue: algo de muito ruim pode, de repente, acontecer.