segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A imperfeição das horas



Com nossa visão acalmada pelo poder
Da harmonia, e tomados por um êxtase profundo,
Nós vislumbramos a essência vital de todas as coisas.

[William Wordsworth¹]


o relógio na parede, por Sergia A.



Julho se dedicou a elas. Quebrado em três trechos para abrigá-las em suas divergências naturais: de sul e inverno, abrir portas para chegadas, ao mar e ao vento do litoral. Em uma noite do meio estamos reunidas na sala. O relógio badalando e nos obrigando a ver o tempo passar. Estático a nos fixar, como parte da parede, apesar do movimento incessante dos ponteiros e da chavezinha de cordas lembrando gestos dos ancestrais. Histórias que sou obrigada a repetir e repetir. E de repente ela pula no meu colo e pergunta:
- para que servem as horas?

Engasgo antes de responder. Preciso de um gole de água para dar tempo aos neurônios de processar alguma ideia e transformá-la em algo que se encaixe na sua pouca idade. Alinhavo alguma coisa sobre a necessidade humana de marcar o tempo exato das coisas. O dia a noite, a agenda, o trabalho, o descanso. Resposta imperfeita, certamente. Mas ela ainda não aprendeu a perder seu tempo em busca da perfeição. Aceita com aparente naturalidade os desequilíbrios dos adultos e volta aos jogos e inquietação dos demais.

Tablet à mão, percorro as notícias nos portais nacionais. Olimpíada a caminho. Competindo com comoventes relatos da vida dos atletas estão os deslizes da organização. Alguns prenunciam o caos, como se apenas certificassem a visão corrente de nós mesmos. Incapazes, dependentes, eternos colonizados. O que me vem à mente é o momento em que se anunciou a vitoriosa campanha do Rio. A euforia. Passos largos que encurtariam o caminho para o futuro. O país do pleno emprego, precisando com urgência resolver seus problemas estruturais. A discussão de uma agenda progressista atropelada por uma disputa eleitoral. Os erros que oferecem ao atraso raivoso meios de eternizar o seu lugar. O relógio novamente. Em que hora do dia, da noite nos perdemos? Quantas voltas darão os ponteiros até que se encontre um novo caminho?

Recorro aos correspondentes estrangeiros e suas visões sem paixão. Astrid Prange suaviza as aflições que me atormentam ao enumerar as falhas nas edições em outros países. Vai além, propõe uma adequação dos jogos olímpicos à realidade do local, ao invés do local ao COI. Acredita que o Rio terá importante papel nesta proposta de mudança mental. O mundo é diverso por natureza. O universo não segue um padrão. Por puro acaso, encontro o astrofísico Marcelo Gleiser em um vídeo defendendo que o cosmo é imperfeito. Quem disse que não há beleza e harmonia na imperfeição? o que é a perfeição?

Estamos no escuro. Elas aproveitam a falha na eletricidade para brincar de 'Gato Mia'. Objetivo: usar outros sentidos para detectar a localização exata da presa. Cá estamos apurando a audição, o tato. Pequenas imperfeições são perfeição em processo. Rimos alto a cada esbarrão. Pulamos, gritamos a cada acerto. Gargalhamos até o relógio anunciar a hora do sono. E a energia retornar para recarregar novos sensos. Acomodam-se em seus colchões depois do banho. Livros e o tom das palavras acalmando as mentes. Exaustas adormecemos. A noite passará. Para que mesmo que servem as horas?

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1. in Lines Composed a Few Miles Above Tintern Abbey, citado por Marcelo Gleiser em A dança do Universo p.382, sem referência  a tradução

2 comentários:

  1. Gostei bastante; voltarei outras vezes (procurei um comentário mais inteligente mas não encontrei, sorry. Mas vi ali ao lado o pedido e achei que um comentário simples ainda é melhor que nenhum ;-) .
    Aquele Abraço,
    Helê

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    Respostas
    1. obrigada, Helê! Só a sua leitura já me deixa feliz. Um abraço.

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