domingo, 26 de junho de 2016

Da dança e do amor infinito




Toda bailarina pela vida vai levar

Sua doce sina de dançar, dançar, dançar...

[Toquinho, in A bailarina]




Camarim, por Sergia A. e "O exame de Ballet" [pastel de Degas, in Denver Art Museum]


Ela tinha quatro anos. Na entrada lateral do Teatro a entrego aos cuidados da coordenação. Ela se recusou a subir no palco, disseram-me na saída. Enxuguei suas lágrimas e a abracei longamente para dizer que estava tudo bem. Era grande o peso do palco. Naquele instante nada me dizia que ele se tornaria leve nos anos que se seguiram. Tão leve quanto os saltos. Leve como o movimento ritmado. Leve como as asas do tempo.

Ela tem quatro anos. Fico encarregada de levá-la ao camarim. Não devo permanecer no recinto. Santuário de transformação em dois tempos. Cabelos em coque. Mãos habilidosas retocam adereços. Viro-me em despedida e me assusta a sensação de dejà vu. O mesmo tipo de rosto em um novo porte. Sem lentes ajustáveis fotografo a elegância natural que se manifesta, tendo a ousadia de me imaginar diante de uma modelo de Degas. 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Os motivos


(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)


[Sophia de Mello Breyner, in Viagem - fragmento do poema Naufrágio]




delicadezas, por Sergia A.



delicadezas se debruçam sobre a janela. a pedido do vento que sopra para longe as nuvens. abrem caminho para os raios de um sol que do outro lado se pendura.

delicadezas se balançam na janela. a pedido do verde cansado de si mesmo. arranham o vidro os pequenos espinhos, para que se perca do olhar a nitidez. 

delicadezas alçam voos sobre a janela. a pedido do azul que a vista já não comporta. batem asas em partida afunilando ciclos. ou deixando pistas de um retorno possível.

definha a cor. atrás de um novo rabisco o paraíso. 



segunda-feira, 13 de junho de 2016

O deboche dos desesperados e os sobreviventes



O fole roncou no alto da serra
Cabroeira da minha terra
Subiu a ladeira e foi brincar


O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco
Peba Macho, Bode Branco
Todo mundo foi brincar
Maria Doida, Margarida Florisbela
Muito triste na janela, não dançou
Não quis entrar

[Nelson Valença/Luís Gonzaga in O fole roncou]



Vila Junina 2015
[gentilmente autorizada pela fotógrafa Maria Dimas R. Lages]



Quem nasce nas bandas de cá aprende cedo a amar junho. Fogueiras, guloseimas, brincadeiras, fogos, alegria. Na escola, na igreja, nas praças, nas ruas, tudo é festa. Quem viveu isso na infância não consegue ouvir o fole roncar sem sentir o peito sacudir, a espinha arrepiar e o corpo balançar involuntariamente. Quaisquer que sejam as circunstâncias sempre haverá um xote, um baião, um xaxado, uma quadrilha, um arrasta-pé para animar o forró ou aquietar o coração. Talvez por isso, quando amanhece o mês, eu fique assim olhando para o céu em busca de andorinhas.

Já tremulam bandeiras sob um céu de anil, embora as circunstâncias não nos parecem das mais animadas. Que o diga as marias doidas que carregam suas tristezas muito além das janelas. Em trupes ensanguentadas repetem versos esquecidos que ganham vigor no falar dos nossos dias. Elas e os meninos. Os meninos tinham uma arma, dizem os policiais. O menino recebeu uma bala na cabeça como castigo pelo furto. O parceiro sobrevivente quer estudar, ser jogador de futebol, ser alguém na vida. O menino estava na rua dos outros meninos que estudam e serão alguém na vida. Em uma rua da cidade símbolo de grandeza. No estado que deve explicações sobre o furto. Não, não apenas de um carro de um condomínio em um bairro rico. Mas também o da merenda que muitas vezes garante a frequência de crianças na rede pública onde o menino sobrevivente quer estudar. No mesmo estado que deve explicações sobre uma licitação suspensa por superfaturamento na compra de medalhas, dessas que recebem os esportistas em competições. Essas que o menino sobrevivente quer ostentar no peito e encher os pais de orgulho, nos campeonatos de futebol. Furtos ironicamente não castigados. Nos meus delírios escrevi esse enredo para uma quadrilha com o nome Deboche dos Desesperados. Acordei. É junho. Não é quadrilha e nem delírio. Está no jornal.