segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sobre histórias que contamos a nós mesmos


Bato à porta da pedra.
- Sou eu, me deixa entrar.
Não busco em ti refúgio eterno.
Não sou infeliz.
Não sou uma sem-teto.
O meu mundo merece retorno.
Entro e saio de mãos vazias.
E para provar que de fato estive presente,
não apresentarei senão palavras,
a que ninguém dará crédito.

(Wislawa Szymborska, in Conversa com a pedra
Poemas p.33, tradução Regina Przybycien)



Verde sobre fundo desfocado, por Sergia A.
  

Ele achava que sua vida toda fora um quase. Quase ganhara uma bolsa de intercâmbio, quase se formara em medicina, quase ganhara um concurso de contos, quase vivera um grande amor, quase, quase vira o seu país encontrar a terceira via finalmente. Assim quase sempre, quase lá. Por um ponto, por um ano, por meio ponto, porque o trem partiu antes da hora e o destino não lhe deu tempo de abrir a porta, porque as elites (internas e externas) reagiram ao incômodo. Entre quases, descobriu sua verdadeira vocação: cultivar Ses. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Madrugada



Já não há mãos dadas no mundo
Elas agora viajarão sozinhas.
Sem o fogo dos velhos contatos,
que ardia por dentro e dava coragem.

(Carlos Drummond de Andrade in Mas viveremos, A rosa do povo p.167)

 
 
Do outro lado, por Sergia A.


Atrás do vidro, a rede de proteção. O anteparo ao salto para a luz que se dilui no asfalto. Antes que se complete a acrobacia. Atrás do vidro, linhas se cruzam e se apagam na luz refletida. Da rua pontos flutuantes iluminam páginas adormecidas. 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Pensamentos bobos às vésperas do dia das mães


Repetir repetir – até ficar diferente
Repetir é um dom do estilo.

(Manoel de Barros, in O livro das ignorãças p.11)


página de Poeminha em Língua de Brincar, Manoel de Barros


Dizem por aí que as meninas de hoje tem avós modernamente prendadas. Daquelas que tiveram poucos filhos e aprenderam conciliar profissão e trabalho doméstico, sem traumas. Entre outras competências, nas horas de folga, sabem agradar maridos, filhos e netos com bolos, doces e pratos gourmet. Modelos de mães, dedicadas e perfeitas como queriam as campanhas publicitarias antes de serem atropeladas por outras gerações, em que pais e mães se aglutinam na construção de novos papeis na relação com os filhos.  

Desse tempo restaram trágicas lembranças. Às vésperas do dia das mães, os anúncios de TV me provocavam urticária. Ai de mim que nasci com o estranho mal de escavacar palavras no teto, e às vezes, muito raramente, enxergar quando lhes brotam asas. Ai de mim que nasci com o estranho mal de enxergar formas e tons nas nuvens, quando apenas sua alvura é aparente. Aí de mim que nasci para inutilidades e sem talento para agradar.  

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O brilho do sol - uma atualização



Das coisas que nos movem:
O texto abaixo foi postado em 20/04/2014 às 12h58. Eis que, uma semana depois, recebo uma mensagem fazendo menção ao poema citado na epígrafe. Nela, um link para um video em que a Camerata Antiqua de Curitiba executa "Renova-te", uma composição de Dimitri Cervo para o mesmo poema.

Encantada, agradeço ao compositor a gentileza do compartilhamento de sua obra. Publico-o novamente, acrescentando esse novo olhar, por entender que o poema ganha vida nova. O renovar-se passa a ser bem mais que um apelo que ganha forma no arranjo de palavras da poeta, e no deLírio das minhas.


* * *

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas. 

(Cecilia Meireles in Cântico XIII, livro Cânticos)



Stonehenge,  por Sergia A.


Domingo de Páscoa. Nuvens, lá fora, encobrindo mansamente o brilho do sol. Uma lembrança se instalando aqui dentro, de repente. Um céu cinza. Gotas finas e novamente uma estrada. Como se isso fosse novidade em uma viagem pelo interior da Inglaterra. No entanto era sim novidade o roteiro daquele dia. O lugar e o arrepio que me corre pelo corpo pra me dizer: sim estou aqui. Pisando o solo e contemplando um templo que guarda segredos ancestrais. E a imaginação seguindo o rodopio do vento.