segunda-feira, 24 de março de 2014

Sem tempo ou lugar


- Alguns patos dizem que a gente vira anjo e fica
sentado numa nuvem olhando para a Terra lá embaixo.
- Pode ser – a morte sentou-se – , afinal asas vocês já tem.
 
(Wolf Erlbruch, in O pato, a morte e a tulipa – Trad. José Marcos Macedo)
 
 
 
Sobre o teclado, por Sergia A.



Há algum tempo não ouvia a angústia na sua voz. E eis que o telefone soa no meio da noite. Sou ouvidos. Uma frase, arrastando-se entre sussurros, indaga: Para onde vai minha energia quando a energia acaba? E continua tecendo arremedos sobre interrogações e pontos finais. Atordoada, imponho-lhe um exercício de respiração. Desperto-me. Desperto-a. Cansada de parágrafos longos, vírgulas e reticências, ela deseja um verbo intransitivo. Nem mesmo adjuntos. Um ponto final, talvez. Procuro no meu dicionário um argumento para dar corpo à oração. O pensamento (nem sempre tão racional) me guia para a natureza que me rodeia. Nada desaparece. Tudo se transforma. À noite, se segue o dia. Ao inverno, a primavera. A semente rebenta para o broto germinar.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Longe é um lugar que existiu


 
Mar perecido, por Sergia A.
Montagem sobre poema de Helena Kolody
in Poemas do Amor impossível p.105
 
   
Escrever sempre foi para mim uma forma de me sentir viva. Tanto nas fases de eufóricas certezas quanto naquelas em que só as lágrimas nos entendem. Escondia os pequenos escritos, com medo do desvio que podiam revelar. Muitos foram queimados, outros se dissolveram nas gavetas mofadas. Por esses dias encontrei, por acaso, um pequeno caderno junto com antigos cartões postais.  Do tempo em que uma alegria carregada de esperança chegava em linhas que vinham de muito longe. Passei a limpo. Amassei. Decido publicar. Já não tenho medo do escuro. E, talvez, já não tenha idade para brincar de esconder...

segunda-feira, 10 de março de 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

O corpo que sou

Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Que grita para quem quiser ouvir
 
(Caetano Veloso in A luz de Tieta)

Nu deitado, Di Cavalcanti
Óleo/madeira 82 x 100 cm (1930/1935)
Fonte:  site do Museu Castro Maya - Rio de Janeiro



Nasci em meio a mulheres extremamente fortes. Reza a lenda que, dentre elas, fui a única a vir ao mundo com assistência de um médico. De qualquer modo, havia no quarto uma parteira e outras mulheres para dar garantia. Uma tomou-me no colo e derramou sobre meu pequeno corpo o primeiro cuidado. Com a ausência da figura paterna, fui educada para ser forte. O manto e o alimento chegavam por mãos femininas. E isso era tudo. O ser forte se estendia da independência financeira à fronteira dos afetos. A posse do próprio corpo, por exemplo, ali não tinha lugar. Não escapava à construção cultural do espaço e do tempo. Ser forte era preservá-lo para uma abençoada proteção masculina.

Descubro tempos depois que ser forte também significa desconstruir, sempre que necessário. Sim, eu sou um corpo. E pensar o corpo como domínio do eu, surge como necessidade quando vejo na mídia a repercussão sobre o caso das camisetas com apelo sexual, fabricadas pela Adidas para a Copa 2014 e postas à venda pelo seu braço Americano. Do caldeirão de discursos moralistas, saltam palavras e pontos de interrogação para instigar minha mente. O que a estampa diz sobre nós (mulheres brasileiras)? De onde vem mesmo essa imagem que tanto nos incomoda?