quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A culpa é do verão



It's not whether you win or lose, it's how you place the blame

(Oscar Wild, retirado de The Wild Wit of Oscar Wilde)



sol do equador, por Sergia A.


Foi só terminar a apuração, começou a zoeira. Eleições polarizadas. Divisão. Culpa daqui. Culpa de lá. Twitter. Passagens para Miami. Facebook. Xingamento. Xenofobia. Instagram. Grosseria. Piadas. Um escarcéu. Ah! Eu precisava, urgentemente, de uma tela em branco... As teclas ali, ardendo entre meus dedos... A sonoridade da palavra zoar... o telefone toca...  Ela (uma eleitora indecisa) me conta uma historinha. Pronto. Nada melhor que a ficção para afastar maledicência:

Noite de domingo. Ela, aflita em frente a TV, toma um gole de água. Horário de verão. Três fusos dividindo o país e adiando o resultado da eleição. Um canal de TV a cabo. Comentaristas a postos. A Rede G. se afirmando porta voz do desejo nacional. Em jogo o sonho de um país moderno. Liberal. Credibilidade para o capital financeiro retornar. Nos intervalos, o sobe e desce do dólar. A bolsa de valores em queda. O país precisa crescer, repetiam em tempo cronometrado para convencer a audiência.

19h. Horário de Brasília. Computados os votos do centro/sul/sudeste. Divulgação oficial não liberada. Explicava em tom professoral, a cada segundo, a Sra. R.:
- O norte ainda vota. O nordeste está encerrando. 

A tela aberta esperando dados prometidos para as 20h de Brasília. Afundada na poltrona, Ela percebe uma agitação na bancada. A câmera desvia para votos de governador. O Sr. M. desaparece. Retorna com um semblante mais sereno. Talvez tenha ido ao banheiro, Ela pensa. Acentua-se a ênfase no Brasil moderno. Ela tem um pressentimento. Pega uma maçã. Precisa mastigar. O sr. M. não se contém e dispara:
- O Sr. F. e o Sr. G. estão se dirigindo ao aeroporto rumo a BH. Não sei que informação tiveram. 

domingo, 26 de outubro de 2014

Diálogo com o universo






Viagens! Não vivo sem elas. O jeito mais eficaz e indolor de alterar pontos de vista. Essencial para não ficarmos presos ao que nos convém. Inevitável. Na volta nunca somos os mesmos. Da última, uma revolução aqui dentro... Ideias a mil... Sabe aquela história de que a pátria é a nossa língua? Pois é, foi o que me confirmaram as ruas, os museus, as bibliotecas, as livrarias de Lisboa e de algumas cidades históricas do norte de Portugal.

Aqui, uma das preciosidades da minha bagagem de volta. Direto de uma mostra sobre o poeta e tradutor português Antonio Ramos Rosa, que tive a graça de visitar. Agora está ali, entre tantos, se avolumando na mesa de cabeceira. Esperando cada um a sua hora.

domingo, 19 de outubro de 2014

Geometria da descida



Imagem gentilmente cedida pela fotógrafa Edilene Facundes



No fim de uma escada
em sombra quedam-se as formas:
porta para o nada?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sob o céu de imortal claridade



Para descrever as nuvens 
eu necessitaria ser muito rápida – 
numa fração de segundo 
deixam de ser estas, tornam-se outras. 

(Wislawa Szymborska in Nuvens, poemas p.103
tradução: Regina Przybycien) 



 Além do árido sertão, por Sergia A.


Trago comigo uma estranha mania. Olhar para nuvens. O vagar ligeiro. O passar carregado. Não importa: aprecio. Observo. Faço anotações. Enquanto elas seguem seu rumo sem se dar conta da minha existência simplória. Mania, talvez, de quem nasceu nos grotões (para usar palavra da moda) “sob o céu de imortal claridade” (para usar palavras do poeta, que dão corpo ao hino). Faz parte de mim. 

Às vezes elas afetam meu humor, devo confessar. Ficam por aqui remoendo. Atiçando minha busca por serenidade. Divago por outros céus. E as formas se multiplicam aqui dentro, ao sabor do vento. É assim que esse blog se movimenta. Não há pretensão de retê-las em descrições. Apenas deixar que se vá a tormenta. E elas se vão, caprichando em novos arranjos para me confundir. Ou, para me dizer que as formas não se encerram em si mesmas. Talvez, por isso pareça-me estranho e provocador acordar aprisionada em uma forma única.

sábado, 4 de outubro de 2014

Tempo de promessas II



Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, 
Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem. 

(personagem de José Saramago in Ensaio sobre a cegueira p.310)



Recado na parede (em Lisboa, Portugal)


Calei-me por um tempo. Contentei-me em observar. Voei para fugir do desencanto. Ausentar-me. Ver de longe. Caminho entre ruelas estreitas de cidades medievais. Caminho entre modernas alamedas arborizadas. Caminho ao longo de largas avenidas e seus viadutos. Um recado na parede surge diante da minha lente. Providencial para esse tempo de ouvir um ruidoso falar.

De volta, não escapo da tristeza pela obrigação de votar. Entristeço-me por essa tristeza. Desejo o prazer da escolha, mesmo que o tempo pareça seco. Revejo, facilmente, uma noite interminável que não merece retorno. E a secura de que hoje reclamo é, talvez, fruto da ansiedade de quem vive de sonhos. Da certeza de que há muito por fazer para vê-los realidade.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Último dia de verão



Enquanto ela dormia, por Sergia A.

Sobre o corpo cansado 
pesavam as vestes 
intumescidas
o torpor da tarde
a fadiga o deslize
despidos
entre a lâmina fria 
de um espelho e o limo.

Atravessando estações
flutua o gesto 
em curvas 
esculpido.


(Solar de Mateus, 21/09/2014)