domingo, 30 de junho de 2013

Desfolhamento


Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.

(Manoel de Barros in
Os deslimites da palavra - O livro das ignorãças)


Janela para nuvens,  por  Sergia A.


O ouvido já não capta o silêncio. Nem os sussurros anoitecidos ressoando entre   versos   inconfessáveis.   Avesso. Os rastos ofuscam o brilho da janela. Opacos rebentos do agora movendo-se em rodopios ao sabor do vento, entorpecidos sob o peso das horas.

O olho já não alcança o gesto. Vestígios dissolvendo-se na luz difusa da ausência. Reverso. Toma corpo o que de corpo se ressente. Ergue de leve a minha mão e juntos colorimos com brandura o leito branco onde adormece a fria solidão.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Vivendo um cenário mutante


Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

(Mia Couto in Confidência)
 

Verde em dias brancos,  por Sergia A.

Palavras estão sempre dispostas a dar forma ao pensamento. Ou, a dar sentido ao que se vive. Às vezes é difícil arranjá-las. Em outras elas nos encontram. Perplexidade, por exemplo, parece ser a palavra que se impõe no céu de junho. Jornalistas se dividem entre o enaltecimento do despertar e a condenação dos excessos. Analistas políticos se apressam em costurar argumentos enquanto as velhas raposas se recolhem emudecidas. O país de ontem atraía olhares de cobiça. Hoje revela, sem pudores, a face descontente. Entre uma partida e outra, expõe suas dores. E o tempo segue prenhe de interrogações.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Nuvens de junho


Sob as luzes da cidade há cor alegre
Há festa e a vida ri sem fim
Nem meu dedo esticado traz um
pouco do gosto
Do doce mel pra mim, pra mim.

Viva o tempo sorridente que me abraça!
Viva o copo de aguardente que me abraça!
Morte ao trabalhador sem valor!


(Gonzaguinha in O trem)



 

 

Junho-abril, por Sergia A.


Junho anda mudo, emburrado como diria uma amiga lá do Sul. E eu que vejo sorrisos em nuvens e ouço com prazer o canto das chuvas devo reconhecer que este céu não se afina com bandeirolas e andorinhas. Esperei pelo milagre até o dia de Santo Antônio. Que nada! mesmo depois das primeiras fogueiras e da noite de simpatias dos que ainda sonham com casamento, elas amanheceram lá. Onde foi parar o meu céu de anil?

Durante os anos das divisórias cinzas, um dos meus refúgios favoritos era abrir as persianas nas manhãs de junho e dar de cara com a revoada de andorinhas sobre o azul recortado pelas torres da Igreja do Amparo. E elas voavam absolutas, sem se dar conta do bem que me faziam. Devolviam, por alguns instantes, a paz que nascia do sossego das ruas, do vento no cabelo, da dança das pipas multicoloridas sobre fundo azul sem o risco dos fios elétricos, da fé no futuro. Sem elas e sem o azul ligo a TV e vejo um céu embaçado nas ruas de São Paulo. Não seria novidade se essa névoa não se originasse da terra, das mãos dos homens. O que fazem estes meninos na rua em franco duelo com as forças do Estado? Seria apenas um refluxo das ondas que banham o velho continente?