terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sobre desertos e calendários




No fundo do coração humano, entretanto, algo surdo e obstinado resiste;
algo indomado protesta a nos dizer que há alguma coisa indefinível
pela qual existimos e aspiramos, algo por que vale a pena viver e sofrer.
(Eduardo Giannetti, in Felicidade p. 184)
 
 
Além dos corais, por Sergia A.
 
 
Avanço sobre as ruas desertas da minha cidade. Sobre o vazio que as pessoas em partida deixam para trás no último dia do ano. A nudez das avenidas me provoca insistentemente. Perco (ou ganho) algumas horas inspirando ausências. Acelero em direção a lugar nenhum. Guiada apenas pelo desejo de me deixar contaminar por essa ilusão do nada. Ou, quase nada. Do que repousa no limiar, entre o que se finda e o que ainda se anuncia. 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Onipresença


(pequenos confortos da fé)


Reflexo, por Sergia A.


Se a ausência me invade
Lembro: trago em mim o sol
E o espelho da tarde.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Esperando Papai Noel

We’re tired of being white and we’re tired of being
black, and we’re not going to be white and we’re
not going to be black any longer. We’re going to be
voices now, disembodied voices in the blue sky,
pleasant harmonies in the cavities of your distress.[1]

(Leonard Cohen, in book of longing p.124)


No Museu,  por Sergia A.

Palavras. Às vezes as encontro nos lugares mais inusitados. Às vezes elas caem no meu colo, assim do nada como se aflitas procurassem abrigo. Às vezes vem em imagens. Às vezes escapam no último momento, deslizando entre as pontas dos dedos e o teclado. Por isso os dedos tateiam outras margens. E é assim que encontro nos portais de notícias, o tributo ao grande guerreiro da paz (sic! Até aquela asquerosa revista usou este clichê, mas na falta de substituto à altura fica assim mesmo. Ele é unanimidade!). Pois não é que lá estão eles, no mesmo avião, prontos e compenetrados para dar o ar da sua graça no evento.
A imagem deixa minha mente em polvorosa. José Sarney, Fernando Collor de Melo, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff reunidos no mesmo avião. O que isso tem a ver com Nelson Mandela? O que disseram um ao outro durante as longas horas de voo? Uma possibilidade: Nada. Certamente tomaram remédio pra dormir. Não havia o que dizer. Sobra em Mandela o que está em falta por aqui. Humildade, compromisso e dignidade, por exemplo. Mas o problema parece não se restringir ao espaço brasileiro. Lá estavam todos os homens/mulheres de boa vontade. Entre eles David Cameron, a bela Helle Thorning-Schmidt e Barack Obama – ovacionado, por sinal. E então, depois do discurso, em que alfineta a postura incoerente de líderes presentes, esquecendo-se do seu próprio umbigo, se comporta como um adolescente ao se descobrir o mais popular da escola. Michelle que o diga.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A distância é azul


Chacun pour soi est reparti
Dans l'tourbillon de la vie
(Cyrus Bassiak, in Le turbillon) 


Aura azul, por Sergia A.

Por ocasião do meu aniversário, recebi mensagens dos mais diversos lugares. Benditas sejam as redes sociais! Além de reaproximar pessoas ainda lhes refrescam a memória (um lembrete de aniversário no Facebook é tudo, convenhamos). E mesmo conscientes disso, ficamos felizes ao receber os cumprimentos. Bom, mas tudo isso é pra dizer que a palavra que me traz hoje aqui veio daí: reaproximação. Ela ficou latejando no meu cérebro, e aí para acalmá-lo me salvam alguns recursos como uma página em branco, por exemplo.

Reaproximar. Tornar próximo novamente. As circunstâncias da vida, ou Le turbillion de la vie, como na canção de Serge Rezvani ou Cyrus Bassiak imortalizada por Jeanne Moreau no filme Jules at Jim de François Truffaut (1962), aproximam pessoas em determinados momentos de suas vidas e as afastam, de repente, sem a menor cerimônia. Mas, eis que surge o mágico poder da tecnologia. E já não importa quantos quilômetros nos separam. Estamos a uma tela do outro. Ficamos mais próximos? Ou não passamos de estranhos tentando parecer amáveis e generosos? Ou, será que apenas alimentamos ferramentas que nos ajudam a tirar proveito da distância física que tudo envolve em uma aura azul?

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Das razões para agradecer


And I can never be thankful
enough to you and to Fate for (...)

(Peter Pears, em carta a Benjamin Britten em 21/Nov/1974) 







Caminhos de água, por Sergia A.
 
Por umas dessas conspirações que o universo adora me proporcionar abro, neste vinte e um de novembro, a pagina 95 do programa do Opera North Festival of Britten (do qual tive a graça de ver a ópera Peter Grimes no último dia nove) e leio cartas trocadas entre Britten e Pears (o compositor e o co-autor da sinopse do libreto, antes da formatação por Montagu Slater). As cartas são escritas após trinta e cinco anos de relacionamento. O tom é de reconhecimento das razões para o agradecimento. Confiro a data. Penso: é um sinal.

sábado, 16 de novembro de 2013

Janela para o Sul


love's function is to fabricate unknownness

(e.e. cummings, in Selected Poems p. 44)



A visita do sol, por Sergia A.


Não escuto o seu cantar. A sede de chuva já não movimenta meus passos. Um sol distante passa apressado diante do vidro da janela. Seus raios me atingem e não me aquecem. Acariciam minha pele e não a queimam. Sua luz alcança meus olhos e não os encandeia. Seu tempo reduzido se estende impreciso sobre o pequeno arco avistado por minha janela. Nascente e poente acenando para mim na mesma janela.

domingo, 10 de novembro de 2013

Efêmero


E um mês se foi sem que minhas palavras pousassem por aqui. Isso não significa que estamos afastadas. Nunca! Elas são meu alimento. Não vivo sem elas. No entanto, as vezes, sou tao absorvida pelo silencio que, em respeito a ele, elas se tornam inconfessaveis.

Bom, mas aqui estou...  levada pelo vento para uma nova estacão. Não resisto aos apelos da natureza:



As folhas, por Sergia  A.


Amarela o verde
vermelhando despedidas:
cor de já não ser.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Licença para falar do amor

The moon and you appear to be
So near and yet so far from me
And here am I on a night in June
Reaching for the moon and you
 
(Irving Berlin in Reaching for the moon)
 
 
Leveza, por Sergia A.
 
 
 
Flores Raras (Reaching for the moon, na divulgação internacional), de Bruno Barreto, em sessão única em uma das poucas salas de cinema desta cidade. Lá dentro me dou conta, penalizada, de que o tamanho da platéia não justificaria um acréscimo. Acomodo-me e me deixo seduzir por uma delicadeza poucas vezes vista no cinema nacional. Delicadeza que se manifesta na trilha sonora, nos figurinos, na fotografia, nos detalhes dos objetos usados em cena para compor uma época, na simplicidade do fluxo narrativo, na naturalidade da abordagem daquilo que é tão caro quanto complicado para os seres humanos: os sentimentos.
 

domingo, 22 de setembro de 2013

Só para loucos


We work in the dark – we do what we can –
We give what we have. Our doubt is our passion,
And our passion is our task. The rest is the madness of art.


(Henry James)

Voo sobre nuanças de azul, por Sergia A.
 


Escuto: em sonho uma voz me fala de compaixão. 

Argumento: sinto o ar de tua dor se me permitires. O ardor de tua paixão. Conheço-a de outros carnavais. Algo mantém o nosso elo. O vento frio na fresta da janela. Noite escura. O silêncio das ruas adormecidas. A dúvida ardendo no peito. Na memória encontro tua solidão. Ao lado dorme um sonho de união. Acalanto. Afago tua mão. Acolho-te no compasso do meu peito. Uma ponte pênsil sobre o fosso que nos separa. Frágil e balançante. Provoco teu sorriso. Carrego o teu fardo. Suavizo teu casulo. Desejo-te o voo leve das borboletas. 

domingo, 8 de setembro de 2013

Passos ritmados


O pescador, por  Sergia A.


Ao rio a rede se lança
Dança em ondas murmurantes
Colhe em fios. Avança.

domingo, 1 de setembro de 2013

Amarelo utópico


desbarbarizar tornou-se a questão
mais urgente da educação hoje em dia. (...)
a tentativa de superar a barbárie é decisiva
para a sobrevivência da humanidade.

 (Theodor Adorno, 1968 - Tradução: Wolfgang Leo Maar)


Explosão de vida em tempo árido, por Eugênia Medeiros


Aprendi na escola há muito tempo que o povo brasileiro era o produto da miscigenação de três raças. Assim mesmo “raças”. Ainda não tínhamos chegado ao esclarecimento de que a raça humana é única. Como exemplo genuíno a cor da minha pele nominava-se parda (nem vermelha, nem negra, nem branca). Aprendi na mesma escola que o povo brasileiro tinha índole pacífica, tolerante e não preconceituosa. Preconceito era o que existia nas sociedades em que se manifestava a segregação étnica ou racial. Aqui vivíamos todos em paz. Quem tinha empregados domésticos (de pele escura em sua maioria) os tratava bem (como se fossem da família). Agradecidos eles não cobravam um salário digno e a jornada de trabalho não era definida. Não questionávamos (era proibido questionar) os significados de pacifismo, tolerância e muito menos a ausência de peles negras ao lado das pardas e brancas nos bancos da mesma escola. Ouvia-se com frequência uma sentença: quem não pode não estuda.

Tempos depois aprendi que a verdade tem múltiplas faces. Descobri na banalidade das notícias diárias que nossa índole pacífica não nos impede de ter um dos índices de criminalidade mais altos do mundo, de depredarmos patrimônio público ou privado em nome do ato democrático de protestar, ou de agredirmos até a morte alguém que nos xinga no trânsito ou que torce por um time de futebol que não é o nosso. Descobri no horário nobre da televisão que a nossa tolerância tende a ser sinônimo de passividade ao aceitarmos como normal a violência institucional (das corporações que deveriam garantir a segurança pública, por exemplo) ou a corrupção generalizada que retira todas as possibilidades de acesso a serviços públicos de qualidade. Descobri ainda que o nosso não preconceito não resiste ao incômodo de ver pessoas de pele escura (brasileiros e estrangeiros) ou mestiços da emergente “classe C” ocupando os lugares que historicamente pertenciam aos brancos ou pardos de boa aparência, seja em um simples assento de transporte aéreo seja em um posto médico em longínquos rincões. 

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

E se...


Janela para arbustos

Os dias começam a ficar insuportáveis por aqui. Dizem que ficamos mais tolerantes com a idade. Devo ter nascido ao revés. Estou impaciente, mais e mais... Meu corpo sucumbe ao ar quente e seco que abafa as tardes. Desisto das ruas. Procuro refúgio. Enfurno-me. Estendo a mão. Encontro-o à minha espera, sempre. O melhor de tudo: ele não me pergunta por onde andei. Abre-se em sorrisos. Acolhe-me. E eu vou... antes que se apoderem de mim todos os se que me perseguem.

domingo, 18 de agosto de 2013

Convite ao prazer


Sempre é preciso pedir desculpas para falar de pintura
 
(Paul Valéry in Sobre Corot)


A Santa Inquisição, 1985
Acrílica sobre eucatex

 

Desmonta-se a exposição “Faces de Lizmedeiros” na Casa da Cultura. Por dias a fio procurei em vão nas publicações locais alguma referência mais substanciada sobre a arte que motivara o evento. Nada além das notas superficiais que noticiam o acontecimento e trazem uma curta biografia da artista. Notícias apenas. Como se notifica a morte ou o casamento de alguém importante ou inaugurações de obras públicas por políticos à caça de votos. Discutir arte parece não despertar interesse dos grandes veículos por essas bandas.  

O que é arte? Como a reconhecemos? Questões difíceis de serem respondidas depois do advento do Modernismo, e de forma especial nas últimas décadas em que se intensificou o debate entre os critérios essencialmente estéticos e os critérios que privilegiam o resgate social. Gosto de pensar na autonomia da arte, embora sem desconectá-la do seu contexto afinal nenhum homem é uma ilha, já dizia um grande poeta há muitos séculos. Seja qual for a escolha, a arte será sempre aquilo que nos toca e inquieta ao ponto de nos deixar mudos no instante da fruição. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Grávidos


Close your eyes
Have no fear
The monster's gone
He's on the run and your daddy's here
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy (...)

Before you cross the street
Take my hand
Life is what happens to you
While you're busy making other plans


(John Lennon in Beautiful boy)


M/Paternidade,  por Sergia  A.
 

Desconfio que sofro de um estranho mal. A obrigatoriedade me dá sono enquanto a liberdade me desperta. Foi assim que acordei cedo em uma manhã de agenda vazia. Liguei a TV em um gesto automático. Um talk show em reprise. Um grupo de mulheres bem sucedidas em profissões ditas masculinas discute a questão feminina na sociedade contemporânea. Os discursos se repetem: os novos papéis, o acúmulo de atribuições, as conquistas, a maternidade e o sentimento de culpa, e o receio de se definir como feminista (um conceito ultrapassado, para a maioria delas). Por mais que a mediadora tentasse aproximar Simone de Beauvoir dos argumentos que suas experiências individuais teciam, nenhuma das convidadas se permitia falar da obrigação materna de cuidar dos filhos como construção cultural (ponto crucial para compreensão da dependência econômica das mulheres).

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Sobre ondas


Adejo,  por Sergia A.


Tempo de acomodação. Assento. Uma a uma enfileirando-se na sequência pela necessidade determinada. Acentua meu silêncio. Evento. E o vento revira a areia assentada. Viração. Revoada. Debruço-me sobre a janela para apressar tua chegada.

Tempo de arribação. Movimento. Em bandos entrelaçando-se na cadência pelo acaso arranjada. Move e alimenta minha palavra. Alarido. E o adejo aquieta a ânsia convertida. Redenção. Saída. Abro a porta e abraço suavemente tua partida.
 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Voo de andorinhas


Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
(Manoel de Barros in Brincadeiras,
 no livro Memórias inventadas para crianças)



Ocaso, por Sergia A.


Um chamado e um quarto de hospital. Uma noite apenas para oferecer meus cuidados um tanto desajeitados. Com idade avançada e impedida de locomover-se minha paciente transmitia no olhar uma aflição maior do que a dor física: ver sua independência a muito custo edificada ser anulada de repente. Recusava-se a ser tratada como um bebê. No amanhecer a constatação de que a medicina ou a enfermagem não seria uma escolha profissional possível para mim, definitivamente. Encarar cruamente nas manhãs o nosso inevitável destino me tiraria o prumo. Preciso alimentar minha alma de ilusões. Abraço a ficção.

Doce ilusão (não resisti ao trocadilho bem clichê). A ficção me sacode tanto quanto a realidade. Bela e incômoda como a nudez de um corpo envelhecido, esta se apodera do filme Amour (2012), do diretor austríaco Michael Haneke, que só após o lançamento em DVD pude assistir. Nele um casal de musicistas idosos, cultos e inteligentes vê a autonomia e o controle de suas vidas escorrerem por entre os dedos em um instante. Tal qual o chá que a mão inerte não mais consegue direcionar ao caminho óbvio, automático, do bule à xícara. O ritmo é lento como o movimento das personagens. A música, como na vida, só via instrumentos ou aparelhos de som que compõem a cena. A ternura do titulo, percebida na cumplicidade das personagens, acentua a tragicidade da decadência. O desfecho é angustiante como a certeza do que nos espera. 



Fonte:  YouTube

domingo, 14 de julho de 2013

domingo, 30 de junho de 2013

Desfolhamento


Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.

(Manoel de Barros in
Os deslimites da palavra - O livro das ignorãças)


Janela para nuvens,  por  Sergia A.


O ouvido já não capta o silêncio. Nem os sussurros anoitecidos ressoando entre   versos   inconfessáveis.   Avesso. Os rastos ofuscam o brilho da janela. Opacos rebentos do agora movendo-se em rodopios ao sabor do vento, entorpecidos sob o peso das horas.

O olho já não alcança o gesto. Vestígios dissolvendo-se na luz difusa da ausência. Reverso. Toma corpo o que de corpo se ressente. Ergue de leve a minha mão e juntos colorimos com brandura o leito branco onde adormece a fria solidão.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Vivendo um cenário mutante


Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

(Mia Couto in Confidência)
 

Verde em dias brancos,  por Sergia A.

Palavras estão sempre dispostas a dar forma ao pensamento. Ou, a dar sentido ao que se vive. Às vezes é difícil arranjá-las. Em outras elas nos encontram. Perplexidade, por exemplo, parece ser a palavra que se impõe no céu de junho. Jornalistas se dividem entre o enaltecimento do despertar e a condenação dos excessos. Analistas políticos se apressam em costurar argumentos enquanto as velhas raposas se recolhem emudecidas. O país de ontem atraía olhares de cobiça. Hoje revela, sem pudores, a face descontente. Entre uma partida e outra, expõe suas dores. E o tempo segue prenhe de interrogações.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Nuvens de junho


Sob as luzes da cidade há cor alegre
Há festa e a vida ri sem fim
Nem meu dedo esticado traz um
pouco do gosto
Do doce mel pra mim, pra mim.

Viva o tempo sorridente que me abraça!
Viva o copo de aguardente que me abraça!
Morte ao trabalhador sem valor!


(Gonzaguinha in O trem)



 

 

Junho-abril, por Sergia A.


Junho anda mudo, emburrado como diria uma amiga lá do Sul. E eu que vejo sorrisos em nuvens e ouço com prazer o canto das chuvas devo reconhecer que este céu não se afina com bandeirolas e andorinhas. Esperei pelo milagre até o dia de Santo Antônio. Que nada! mesmo depois das primeiras fogueiras e da noite de simpatias dos que ainda sonham com casamento, elas amanheceram lá. Onde foi parar o meu céu de anil?

Durante os anos das divisórias cinzas, um dos meus refúgios favoritos era abrir as persianas nas manhãs de junho e dar de cara com a revoada de andorinhas sobre o azul recortado pelas torres da Igreja do Amparo. E elas voavam absolutas, sem se dar conta do bem que me faziam. Devolviam, por alguns instantes, a paz que nascia do sossego das ruas, do vento no cabelo, da dança das pipas multicoloridas sobre fundo azul sem o risco dos fios elétricos, da fé no futuro. Sem elas e sem o azul ligo a TV e vejo um céu embaçado nas ruas de São Paulo. Não seria novidade se essa névoa não se originasse da terra, das mãos dos homens. O que fazem estes meninos na rua em franco duelo com as forças do Estado? Seria apenas um refluxo das ondas que banham o velho continente?

terça-feira, 28 de maio de 2013

Outro lado


Toda palavra pressupõe uma experiência partilhada.

(Jorge Luis Borges, in Atlas. Trad. Heloisa Jahn)



Janela para quintais, por  Sergia  A.



Desperto. Na janela revelo uma nudez amanhecida. Do outro lado à espera, outra esfera. Um toque atravessa a lâmina que nos separa e arranha de leve a minha pele.
 
Deserto. De peito aberto por ruas adormecidas. Um mergulho na amplidão que nos ampara. Reparo na mudez que se rebela. Sem primavera, e ainda assim há flores nos quintais.


sexta-feira, 17 de maio de 2013

Intuição e pensamento


 
A dança da chama,  por Sergia  A.


Faz-se luz, aquece
se há que consumir-se em chamas
um sopro agradece.


 

domingo, 5 de maio de 2013

Tecelã


 
Dilemas de uma aranha,  por Sergia  A.


Sem teia deslizo
entre ralos e sombras.
Um fio: paraíso
 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Das desilusões e recomeços


Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar, eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera.
Eu vou ao encontro do que me espera.

(Clarice Lispector in A descoberta do mundo)

 

 
Ana Teixeira em Colônia/Alemanha


No meio da noite ainda escuto sua voz entrecortada por soluços. Ela derrama sobre mim os seus desencantos. Sou apenas ouvidos para as aflições da sua juventude. Contida, esboço um sorriso diante de sua trágica decisão sobre o amor. Quando o sol se levanta ela parte entusiasmada por novos acenos. Alívio. Ainda não foi dessa vez que se instalou a tal síndrome do coração partido, o nome que a ciência encontrou para justificar o que os poetas já afirmavam há séculos. Habituei-me desde cedo às narrativas das dores profundas das desilusões. Mas, há um ranço de teimosia dentro de mim que não me permite pensar no amor como causa mortis. Gosto de pensá-lo sempre como propulsor de vida. 
 
Isso me vem à mente quando visito o site da artista visual Ana Teixeira. Interessada na subjetividade humana, Ana tem se dedicado à pesquisa da maneira como nos relacionamos ou como tecemos a narrativa de nossas próprias vidas. Em uma de suas intervenções/ações, que se estendeu por sete anos (2005-2012), ela percorreu diversos países para ouvir histórias de amor. Sentava-se em locais públicos a tricotar. Ao seu lado uma cadeira vazia e um cartaz que dizia em língua local: escuto histórias de amor. Como na vida, a intimidade das histórias não é revelada nas exposições, fica secretamente embutida no barulho das ruas, na sonoridade das línguas sobrepostas e na trama do tecido tricotado. Enquanto os narradores seguem com mais leveza os seus destinos, acredita o meu gosto pela vida. O que menos importa é se suas narrativas são alegres ou carregadas de dores.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O risco da lua cheia


 
Céu de abril, por Sergia  A.
 

Nem lobos, nem uivos. Ainda assim, coisas encantadoramente inexplicáveis me acontecem de vez em quando. Com muito o que ler e escrever por esses dias em que os prazos se apertam fico assim de cara para a lua em busca de estrelas, enquanto o sol e as nuvens se digladiam.
 
Desvio com esforço o olhar para encontrar o foco e vejo-os ali na estante vigiando minhas incoerências. Não resisto. Abro uma página por acaso. Embarco em outro abril recheado de vazios sob o risco da lua. E qual não foi o meu espanto quando me deparo com datas/dias da semana/calendário lunar coincidentemente se repetindo. O ano é 1918. O tempo é de guerra e suas incertezas:

domingo, 21 de abril de 2013

Entre margens



Há coisas que não precisamos pensar nem decidir para fazer,
como se não apenas o mundo e o tempo, mas uma coisa nossa
lá dentro nos obrigasse sem nada consultar, e assim se faz sem
perceber, talvez sem querer. E imerso nesses devaneios o
caminhante viu-se sozinho novamente.

(Adriano Lobão Aragão in Os intrépidos andarilhos e outras margens)



Migrante,  por Sergia  A.




A chuva cai torrencialmente lá fora.  Tenho certo gosto por ouvi-la batendo forte no vidro da janela. Algo em mim desperta. Nada me remove da maciez em que me afundo. Elas entram sem bater. Abrigo-me confortavelmente entre elas. Adoro esses dias, agora que o tempo permite que eu me perca e me encontre entre suas margens com frequência. E elas me acertam a alma em cheio! Avanço em suas páginas. Distraio-me olhando fixamente o marcador.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Espelho II


 
Havana refletida,  por Sergia  A.


No novo, reflexos
do outro que sou para mim
sob olhos perplexos.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Cinco noites


Rodeada de mar por todas partes,
soy isla asida al tallo de los vientos...
Nadie escucha mi voz, si rezo o grito:
Puedo volar o hundirme... Puedo, a veces,
morder mi cola en signo de Infinito.
Soy tierra desgajándome... Hay momentos
en que el agua me ciega y me acobarda,
en que el agua es la muerte donde floto...
Pero abierta a mareas y a ciclones,
hinco en el mar raíz roto.
Crezco del mar y muero de él... Me alzo
¡para volverme en nudos desatados...!
¡Me come un mar batido por las alas
de arcángeles sin cielo, naufragados!


 (Dulce María Loynaz )


Praça da Revolução, por Sergia A.

Sem roteiro definido desembarco no aeroporto José Martí, movida por uma curiosidade que se conteve por décadas. Meus olhos habituados ao estímulo dos outdoors chamativos, letreiros brilhantes e vitrines luminosas de outras metrópoles vencem a estranheza e se adaptam lentamente à baixa quantidade de lumens das ruas e avenidas que me levam às proximidades do centro histórico de Havana. Sim, fujo da comodidade dos hotéis de grandes redes que se estendem pela orla e escolho uma acomodação legitimamente cubana. Um mojito me traz o sono e o descanso merecido depois de longas horas de conexões. Ali, na austeridade de um quarto sem telefone ou internet, às vésperas da Páscoa cristã, se inicia minha semana de luz.

domingo, 31 de março de 2013

O coelho, a chuva e o milagre do tempo


O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre,
alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse,
alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho,
miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma.
 
(Guimarães Rosa, in Campo Geral)
 
 
 
Coisas miúdas, por  Sergia A.

 
Desconfio sempre das receitas de felicidade, esse termo abstrato que só se concretiza em momentos únicos, às vezes imperceptíveis de tão pequenos e, portanto, não reaplicáveis. Mas desde que a sua procura passou a ser objetivo de vida das novas gerações, tornou-se alvo das campanhas publicitárias que o vendem em qualquer esquina nas mais diversas embalagens. Então, eis que me chega um link de um concurso promovido por uma rede de supermercados. O desafio era apresentar uma receita de momento feliz, com apenas 500 caracteres, tendo a Páscoa como tema. 
 

domingo, 24 de março de 2013

Mosaico urbano

 
Janela invertida, por  Sergia A.



Inerte a urbe emerge
Da luz que o tempo devora
E o olhar subverte

quinta-feira, 14 de março de 2013

Habemus poesis


fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo.

 (Postulado in tá pronto, seu lobo? - Paulo Machado)
 
 
Recanto,  por Sergia  A.


Enquanto o mundo aguardava uma fumaça branca, eu estava aqui querendo falar de flores. Pois é, foi assim fugindo das intermináveis análises políticas da sucessão no Vaticano que me dei de presente 140 minutos para ver o filme Shi (2010) dirigido pelo coreano Lee Chang-Dong. Fui fisgada logo nas primeiras cenas pelo estranhamento de uma abertura com apenas o ruído diegético: água corrente em close, águas turvas, e em seguida um plano que se amplia acompanhando a grandiosidade de um rio, uma ponte e a normalidade da vida, para novamente se fechar sobre um corpo levado pela correnteza. Ao corpo se sobrepõe o letreiro do sugestivo título (Poesia, na tradução brasileira).

A narrativa segue com trilha musical composta de um completo silêncio. Como no cotidiano fora das telas, a música entra somente se um personagem ligar um aparelho de som ou cantar em cena. Providencial para quem quer dar forma ao inefável como meio de discutir a criação poética. A procura das palavras é o caminho trilhado pela personagem principal (Mija), seja para resgatá-las da escuridão que a ameaça (mal de Alzheimer) ou para dar voz ao gosto por flores e falar coisas esquisitas como ela define sua ingênua veia poética ou, ainda, para despertar um gesto humano que se opõe ao horror. Sim, o horror é ali duplamente representado: de um lado um grupo de adolescentes (do qual faz parte o neto da protagonista) acusado de estuprar uma colega de escola levando-a ao suicídio, e de outro a atitude dos pais desses adolescentes que diante do fato não demonstram indignação estando mais preocupados em proteger seus filhos.

 
Fonte: YouTube

segunda-feira, 11 de março de 2013

O filme publicitário e uma pulga


A culpa não morre nunca, Fonte YouTube


Dizem por aí que o ano brasileiro só começa depois do carnaval. Boa parte dessa lenda se deve às férias escolares que engolem o primeiro mês do ano e colocam familias inteiras na estrada, e o restante ao mito do nosso serviço público. O estranho é que dediquei muitos anos ao trabalho em um banco estatal, e todos eles começaram rigorosamente no dia dois de janeiro. Se quisesse pular ondas e invocar os deuses por um bom ano tinha que me arriscar enfrentando congestionamentos para voltar a tempo depois de um dia e meio de feriado. A não ser que o trinta e um de dezembro caísse em uma quinta ou sexta: a glória! Ainda assim não escapava do perigo que rondava as estradas, pois estávamos todos na mesma agonia.  

Por falar em estrada e em carnaval, esse sempre esteve fortemente associado às nossas deprimentes estatísticas de acidentes. Talvez por isso o governo brasileiro começa o ano comemorando a redução desses números atestada pelos dados sobre o carnaval 2013. E viva a Lei Seca! Gritam em coro a mídia e a sociedade brasileira. Não discordo, muito pelo contrário. Aliás, quem ousaria discordar? Quem não deseja punição severa para os comportamentos de risco ao volante? No entanto, uma pulguinha impertinente se alojou na minha orelha há algumas semanas quando vi a campanha (que não se restringiu ao filme) e em seguida a notícia do seu honroso alcance.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Cartas II


Que nada nos limite
Que nada nos defina
Que nada nos sujeite
Que a liberdade  seja a nossa própria substância...


(Simone de Beauvoir in Liberdade) 
 
Feminino, por Sergia A
 

Já tive oportunidade de falar aqui sobre o fascínio que as cartas exercem sobre mim. E retorno a esse assunto por lembrar que há alguns anos ganhei de uma amiga um edição de bolso do livro Cartas a um jovem poeta (Briefe an einem jungen Dichter, no título original), de Rainer Maria Rilke (1875-1926). Uma reunião de cartas do poeta nascido em Praga (quando essa pertencia ao império Austro-Húngaro) enviadas ao então jovem poeta Franz Xaver Kappus, no período de 1903 a 1908.

sexta-feira, 1 de março de 2013

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Anacronismo


(...)   porque foi sua primeira solidão profunda, o
primeiro trabalho íntimo com que elaborou sua vida.

(Rainer Maria Rilke in Cartas a um jovem poeta,
Trad. de Pedro Sussekind)


Uma rua, por P. Bentley




São seis horas.
No ponto do ônibus raios enrubescidos ainda tangem a noite fria. Fios dourados ao vento, a passos largos ele chega.

São seis horas.
Há sorrisos e ternura em abraços repetidos. Olhares umedecidos cruzando-se, de relance, na trepidação da janela.  E o instante, o tempo dirá, era de adeus.




quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre a face sombria



Dois lados, por  Sergia A.



(...) eu não tenho estética, não busco os temas, os temas me
buscam,  eu tento detê-los mas ao final eles me encontram,
então há que escrever para ficar-se tranqüilo (...)


(Jorge Luis Borges, em conferência sobre criação poética.
Trad. de Wanderson Lima)




Há algum tempo venho resistindo ao impulso de falar sobre esse assunto. Talvez um tempo necessário para o distanciamento que possibilita uma visão do todo, e ameniza os sentimentos que levaram à compreensão de suas diversas faces. Mas, como dizem os grandes mestres, não temos domínio sobre os temas que nos atraem. Ao contrário, somos escolhidos por eles. Então, sem mais fuga, há que se deixar as palavras seguirem seu curso.
 
Sabe-se que o trabalho é um forte componente da vida ativa do homem. E, pode-se dizer que são as atividades produtivas e seu funcionamento que predominam na concepção geral de homem do nosso tempo. O ambiente de trabalho, como um importante recorte do mundo, torna-se assim um bom lugar para observar o comportamento humano. Tive a sorte (sorte?) de trabalhar por trinta anos na mesma empresa, o tempo que chamei de Laboratório. Os altivos consultores de carreira devem estar arrepiados, mas isso não me constrange ou diminui o valor da minha experiência, pois dediquei meu tempo e minhas ações a uma empresa enorme, com uma missão social importante, com várias formas de atuação no mercado, e nos últimos anos com uma grande rotatividade de pessoas. E é justamente na riqueza proporcionada pela convivência com pessoas que se apega o meu delírio nesta noite de clima ameno (benditos sejam os dias de chuva!).

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Múltipla


Ah! os poetas,  e suas palavras poderosas invadindo meu silêncio:


Sobre o azul,  por Sergia A.
 



Às vezes sou o Deus que trago em mim
E então eu sou o deus e o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse deus se esquece
 
Às vezes não sou mais do que um ateu
Desse deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.

(Fernando Pessoa in Deus )

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A soma das manhãs


Sopro morno, por Sergia A.


Para marias e franciscas                 

Com quantas manhãs se faz um despertar?
O gesto simples de descerrar olhos sonolentos e dizer – estou viva
Despertar automático, inocente nos campos da infância
Limão e fogo de lenha perfumando o sol das manhãs
Feijão, arroz e afeto em esteiras de casa de avós.

Com quantas manhãs se faz um despertar?
O gesto nobre de descortinar letras preguiçosas, sem escola
Despertar para o não, negação do direito ao saber – sou mulher
Honrar pai e mãe, mandamentos divinos, convenientes
Espelhos, laços de fita e sentimentos comedidos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Das tormentas e calmaria


The Shakespeare's shipwreck trilogy
Royal Shakespeare Company
Fonte: http://www.worldshakespearefestival.org.uk/





And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve,
And like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dream are made on; and our little life
Is rounded with a sleep. (...)

 
(fala da personagem Prospero de W.Shakespeare in The Tempest, Act Four Scene I) * 


Só queria o cantar das ondas para esquecer por alguns dias as obrigações. Minha mente merecia uma pausa para revitalização. E tudo que ouvi das pessoas nesses dias foram planos e metas para o ano novo. Tudo medido, negociado, dividido em parcelas a vencer. Então, de repente, me baixa aquele santo provocador e me faz lembrar que as melhores coisas da minha vida aconteceram completamente por acaso. Ou será que não?

O engraçado é que tenho certo gosto por planejamento, devo confessar. Aliás, não sei se realmente gosto ou se meu gosto foi moldado pra isso ao longo dos anos. Apesar dos jeans desbotados e dos cabelos em desalinho não quebrei regras importantes na adolescência. Curto até hoje uma saudade do que poderia ter sido. Aos dezoito anos o projeto de vida estava desenhado. Apagou-se em um sopro. Por um curto tempo vivi um sonho coletivo. Entre tormentas, o que chamam realidade me abriu espaço para calmarias.  

domingo, 6 de janeiro de 2013

Silêncio mútuo




Paralelas sobre fundo azul, por  Sergia A.


Há no azul azuis
em linhas de um canto mudo

redizendo a luz.