quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Filhas do Sol do Equador


Há urubus no telhado
e a carne seca é servida
um escorpião encravado
na sua própria ferida
não escapa só escapo
pela porta da saída
[1]


Acabo de ler, com atraso, as notícias sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Uma conceituada revista semanal traz em destaque o Piauí como “A zebra do ENEM” por ter conseguido emplacar duas escolas particulares entre as dez melhores no exame. O conteúdo da reportagem é inquestionável e merece reflexão pelas autoridades, uma vez que de forma apropriada fala do grande fosso que existe, aqui e em todo o País, entre o nível de educação oferecido pelas escolas privadas e o nível das escolas públicas. O que incomoda, entretanto, é o tom pejorativo da manchete.

A escolha do termo “zebra” pode aqui ser entendida como desinformação da jornalista, pois as escolas citadas vem já há alguns anos sendo classificadas entre as melhores do país, portanto um resultado já esperado; ou, como a confirmação de que para a mídia produzida nos grandes centros parece fazer mal falar bem do estado mais pobre da federação, ou seja, quando a notícia é boa tem que ser tratada como uma aberração, algo que não podia acontecer.

No entanto, nascer no Piauí tem lá suas vantagens. Uma delas é que desde cedo aprendemos o valor da auto-estima, que precisa ser construída e fortalecida para servir de escudo, o que nos torna capazes de enfrentar as batalhas da vida onde quer que elas se apresentem. Superada essa fase, a nossa tarefa, além de lutar pelas transformações que precisam acontecer, é, então, exigir com ternura que nossos feitos sejam vistos retirando-se a máscara do preconceito, que, como num ciclo vicioso, contribui para a manutenção do estado de pobreza que o gera.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

sábado, 24 de setembro de 2011

Sobre a Sombra e a Luz


Musica:  Angélica por Chico Buarque
Imagens:  filme Zuzu Angel (2006) por Sérgio Rezende
Fonte: YouTube


Na noite imensa
Tudo em volta adormece
Menos tua ausência.[1]



Honestino Guimarães... Honestino Guimarães... Quatro mil estudantes silenciavam. Um silêncio ensurdecedor intercalava as chamadas que uma voz grave e delicada fazia ressoar no microfone. Um arrepio me subia pelo corpo a cada nome pronunciado. Eram nomes de estudantes como eu, com a diferença de que arbitrariamente lhes fora tirado o direito de estar ali e viver aquele momento. Isso me vem à mente agora quando tomo conhecimento de que o Congresso Nacional aprovou a criação da Comissão da Verdade. Em que pese as críticas à sua formação e autonomia, não deixa de ser um caminho para a restauração da verdade histórica e um alento aos que nesta luta inglória perderam o(a) filho(a), o marido, a mulher, o pai, a mãe, o(a) amigo(a).

Tudo parecia muito confuso. Minha cabeça rodopiava diante de tanta novidade. Mais do que sala de aula, laboratórios e professores, a universidade era aquilo. A única palavra que me vem à mente para associar às imagens que se formam para dar conta do que foram aqueles anos é efervescência. As idéias como líquido na fervura borbulhando sob pressão. Oriunda de uma formação rigorosamente religiosa numa pequena cidade do Piauí, onde o contato com o mundo chegava por meio da Voz do Brasil ou dos programas de TV censurados, aquilo tudo era por demais instigante. Curiosa, mergulhei. De repente um dia, depois de longas horas de estrada, estava lá entre estudantes de todo o país vivenciando o histórico momento de reestruturação da UNE em seu XXXII Congresso em Piracicaba-SP.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

sábado, 17 de setembro de 2011

The Great Gatsby: da Euforia do Sonho ao Império do Medo


Versão Cinematográfica de The Great Gatsby (1974) por Jack
Clayton com roteiro de Ford Coppola.
Fonte: Youtube


O sol escaldante de setembro toma conta dos nossos dias. Se não fossem os Ipês e alguns heróicos Caneleiros oferecerem cor à paisagem não sei o que seria desse início acinzentado de primavera sem orvalho nas manhãs. Explica-se: depois do feito de Bin Laden, setembro ganhou ares de marco histórico e parece ter esquecido que aqui logo abaixo do equador esperamos que ele cumpra o seu papel natural de trazer uma florada cuja beleza seja capaz de nos retirar dos ambientes fechados dos condicionadores de ar. Pois foi numa dessas tardes em que para fugir do calor e das inúmeras análises repetitivas do 11 de setembro resolvi me trancar em um ambiente bem refrigerado e reler The Great Gatsby , o retrato da “América” dos anos 1920 desenhado por F. Scott Fitzgerald.

Um clássico, independente do tempo decorrido da sua escrita, sempre encontra formas novas de tocar o leitor que vive em outros tempos. Neste setembro, uma década depois do trágico feito, não há como ler The Great Gatsby sem fazer uma atualização dos seus temas. O fim da primeira guerra mundial, com a Europa em ruínas, ofereceu aos Estados Unidos da América um tempo de euforia dando inicio ao consumo descontrolado incentivado por uma economia liberal, sem fundamentos sólidos, que foi incapaz de evitar o fim trágico representado pela quebra da bolsa de valores em 1929. Descrevendo a euforia dos primeiros anos da década, o livro traz um narrador ora onisciente ora personagem que nos conta e reflete sobre os acontecimentos de um verão em Nova York. Seus personagens arrogantes, consumistas e infelizes constroem na trama relações tão vazias quanto a futilidade de suas vidas. O personagem central, que dá o título à obra, o rico “self-made” Jay Gatsby, materializa o que a America representava: opulência vista à distância, uma aparência que encobria o conteúdo fluido, desconhecido, onde se sustentava a sua riqueza. Em um exercício futurista o autor dá a Gatsby um fim trágico, como trágico seria o fim da frágil economia americana e sua bolha especulativa alguns anos depois.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O outro em mim

Para almas sem fronteiras

Yurub (06 anos), salva da desnutrição vive em Galcaayo - Somalia
Fonte: http://www.msf.org.br/


Preciso
Urgentemente
Um gesto que te faça rir
Que te mova
Comova
Ou, que do teu rosto o pranto remova.

Preciso
Desesperadamente
Um silêncio que me faça ouvir
Teu canto, tuas dores
Teus temores
Noticias dos teus novos amores.

Preciso
Simplesmente
Perder-me de mim
Arrumar na tua trança o laço
Entrar no teu compasso
A um passo de encontrar-me em ti.

sábado, 10 de setembro de 2011

Janela em Movimento

Pelo Pára-brisa,  por Sergia A.


Na janela a estrada
Rumava ao sol nascente,
Vestia liberdade.

Poesia, Vinho e Conversa Jogada Fora

“A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!”[1]


Um convite para ouvir Manoel de Barros me bateu forte, não dando oportunidade à recusa. À noite lá estávamos, amigas de longa data em volta de uma mesa sob o calor de setembro e os acordes de um violão que se alternava à leitura dos poemas. Os sons e ritmos ora da poesia ora do violão embrenhavam-se nos ouvidos atentos e nos outros nem tanto, construindo a atmosfera singular do ambiente e do momento.

Quem nos via de longe, em algazarras sussurradas aos ouvidos talvez não compreendesse e nos tomasse por um grupo pouco afeito à sensibilidade poética que motivara o encontro, e mais devotado aos prazeres gustativos do tomate recheado e do bom tinto servidos no lugar. Entretanto, assim como a poesia e o vinho que possuem alma e grande poder inebriante, o besteirol que se apropria dos encontros de amigos é também irresistível. Os primeiros pelo poder de nos tocar profundamente e nos conduzir, talvez por caminhos distintos, ao êxtase. O segundo pelo alívio do deixar cair a máscara da sensatez imposta pela vida, e sem receio olhar nos olhos e dizer o que vier à tona sobre o assunto que se colocar na unicidade daquele instante. Daí a razão da não resistência ao triplo apelo.

Ouvimos Manoel de Barros? Talvez não com a sobriedade exigida, no entanto a força de sua poesia se fez ouvir encontrando formas misteriosas de, entre uma taça e outra ou entre bobagens ditas ao acaso, impor-se não apenas pela leitura momentânea dos poemas deixados à mesa mas por leituras outras que de forma inevitável acontecerão invisivelmente no silencio das noites, deixando “apenas que a emoção perdure / Fique na nossa vida fresca e incompreensível / Um mistério suave alisando para sempre o coração”.
 
Escrito em set/2006.
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[1] Manoel de Barros in O Livro das Ignorãnças

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Da série O Laboratório: O Tempo e o Movimento


Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.[1]

Neste 06 de setembro, uma comemoração: o primeiro mês do primeiro ano da segunda parte se foi. Não pude fugir das lembranças da primeira parte.

Hoje uma vontade irresistível de escrever me acordou mais cedo. Há algum tempo não despertava assim, com esta urgência. Alguns fatos passados e bem presentes precipitaram o desejo. Na mente uma imagem persistente: um banco de Igreja onde os seis rendem homenagem ao sétimo que agora se afasta. Lágrimas em cada olhar contrastam visivelmente com o sorriso da fotografia estendida ao pé do altar.

Sabiamente, a memória guarda os bons momentos para nos acalentar quando tudo se distancia. Setembro de 1987: criava-se na CAIXA a Divisão de Engenharia, para fazer frente aos novos desafios advindos da incorporação do BNH. Sob o comando de uma mulher destemida, lá estavam eles adaptando-se à cultura da nova empresa. Entre pensamentos lógicos e racionais, eu tentava, com o pouco que sabia e da forma que conseguia, manter a organização. A linguagem técnica de engenharia me era familiar, o que facilitava a ordenação dos inúmeros laudos, pareceres e análises que as teclas ritmadas da máquina de datilografia registravam ao longo dos dias. Em meio a divisórias cinzas e mobiliário de jacarandá formávamos um pequeno grupo com a missão de fornecer apoio técnico aos negócios e à manutenção do patrimônio da instituição. Brotava ali a semente do que viria a ser, duas décadas depois, o terceiro pé da gigantesca empresa. Brotava ali a lição de respeito e confiança que o cotidiano alimentava.

O tempo habilmente conduzia o movimento do grupo que tomava formas e rumos diversos, de acordo com as oscilações da direção central. Novos braços, novos rostos aos poucos ampliavam a produção e a responsabilidade amparados em estruturas que se montavam e desmontavam ao sabor das ondas inovadoras da administração. Ora tínhamos o status de representação regional, ora não passávamos de uma equipe vinculada a um outro poder estabelecido enquanto dormíamos. O tempo habilmente também conduzia o movimento interior das pessoas. O vai-e-vem dos modelos organizacionais nos oferecia a oportunidade de descobrir que nada somos além daquilo que nos torna humanos: o sentimento. Castelos se desmoronavam da mesma forma que se montavam, e das suas cinzas outros se edificavam em movimentos cíclicos, como cíclicos são os fenômenos da natureza. Restava-nos o aprendizado e a consciência do poder da escolha. Aprendia-se que bons e maus momentos são naturais como naturais são as montanhas e os vales, o dia e a noite, e que a realização de sonhos está diretamente relacionada ao risco da escolha. Em nome dela, já com filhos crescidos, fui impulsionada a retornar aos bancos da faculdade para atender um chamado interior, uma voz que há tempos pedia a atitude de buscar o treino para desenvolver um dom natural. Da mesma forma, seguindo cada um a sua escolha, outros caminhos foram buscados individualmente em novos movimentos delineados habilmente pelo tempo.

Na imagem da Igreja, o tempo presente parece nos oferecer um novo movimento diante do qual choramos por não querer entendê-lo como natural. Um ciclo se fecha, como a noite finda o dia que foi belo ao amanhecer. No entanto, o brilho do dia assim como o sentimento de que somos essencialmente feitos não se dissolve na escuridão da noite.

Aprendizes do tempo, precisamos agora compreender uma nova lição que exige de nós olhos capazes de enxergar o brilho na sombra que passa.

(Escrito em 22/05/2008)
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[1] Ferreira Gullar. Toada à Toa in Em alguma parte alguma

sábado, 3 de setembro de 2011

O Tecido da Espera

Loreena Mckennitt . Fonte: Youtube


Now that the time has come
Soon gone is the day
There upon some distant shore
You’ll hear me say


Long as the day in the summer time
Deep as the wine dark sea
I’ll keep your heart with mine.

Till you come to me.[1]
Tenho fascínio por dicionários. Talvez por serem eles, de alguma forma, os guardiões da palavra. É com eles que me entendo quando me atormenta a angústia de encontrá-las. Foi assim que ao rever o filme Cold Mountain (2003) me dei conta que a língua portuguesa faz uso da mesma palavra – esperar - para definir o ato de aguardar, o que corresponderia na língua inglesa, por exemplo, ao verbo “to wait” e o ato de ter expectativas e desejar que no inglês seria “to hope”. Para nós, falantes da língua portuguesa, parece não haver uma clara definição dos limites entre esperar algo, alguém ou um evento e ter esperança, os múltiplos significados parecem estar naturalmente encerrados na abrangência da palavra “esperar”.

Dirigido pelo cineasta britânico Anthony Minghella (1954-2008), o filme baseado no romance histórico Cold Mountain (1997), do americano Charles Frazier (1950-), tem como cenário a guerra civil Americana (Guerra de Secessão 1861-1865), e trata em sua temática de duas faces do nosso verbo “esperar”. Com idas e vindas no tempo, narra simultaneamente a jornada de Inman, um soldado confederado e desertor, em seu perigoso retorno da guerra movido pela esperança de encontrar a sua amada, e a longa e penosa espera de Ada Monroe, noiva de Inman, em um lugar chamado Cold Mountain. Não há como não perceber que o livro e o filme são recriações de Odisséia de Homero. Há um diálogo intenso em termos estruturais (narrativa não linear e simultânea do retorno de Ulisses e da espera de Penélope) e nos significados que podem ser construídos. Inman luta desesperadamente pela sobrevivência, enfrentando ameaças de toda sorte, e acreditando que no fim o espera uma vida feliz, longe de uma guerra sem sentido. Como Penélope, Ada, enquanto espera, tece a duras penas a vida em uma fazenda e na comunidade ao seu redor porque acredita no retorno da normalidade e de um tempo feliz. Um tecido montado com fios de lágrimas, esperança e de um amor infinito. Não seria exagero dizer que no filme o tão esperado encontro dos amantes é, por sinal, responsável por uma das mais belas cenas de amor do cinema.

No mundo do nosso tempo, onde homens/mulheres poderosos continuam encontrando motivações para a guerra, Penélope e sua espera há muito deixaram de ser referência pela passividade que podem traduzir. Que o diga o tom de revolta em sua voz recriada pela escritora canadense Margaret Atwood (1939-) em A Odisséia de Penélope (2005). No entanto, fugindo da questão de gênero, vemos Inman e Ada como seres humanos que diante de circunstâncias adversas desenvolvem motivos inconscientes para amar e esperar, no amplo sentido português da palavra. Tecer a espera e a esperança, mesmo em tempos em que tudo se dissolve com o vento, parece continuar atendendo nossa necessidade de vínculos fortes para manter a vida.

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[1] Loreena Mckennitt in Penelop’s song.

Uma possível tradução:

Agora que a hora está chegando
Em breve o dia vai findar
Ao longe em uma praia distante
O que digo você ouvirá

Alongado como o dia no verão
Profundo como o escuro mar
Eu manterei junto ao meu o seu coração
Até que para mim você possa voltar.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011