sábado, 27 de agosto de 2011

Em volta da mesa


O Segredo de Brokeback Mountain, por Ang Lee
Fonte: YouTube


A vida toda é uma disputa
entre gosto e degustação.[1]


Uma mesa para oito, disposta com o capricho de quem espera amigos de longa data. Amigos que a vida foi juntando em seu caminho e mesmo a chuva que caía torrencialmente naquela noite seria capaz de afastar. Com efeito contrário, a chuva era o motivo da mesa assim disposta: além de aconchegar garantia ao lugar a temperatura amena que o vinho exigia. Taças brilhantes erguidas tilintavam em nome do encontro, e a transparência do cristal permitia que a cor púrpura do vinho realçasse a singularidade do momento.

O vinho ia aos poucos dando o tom da noite e o pão acentuando o seu sabor. O gosto pela discussão fazia os assuntos jorrarem sobre a mesa se sobrepondo cada um a seu tempo. Ora leves como o azeite das pastas que revestiam o pão. Ora graves, ou mesmo picantes como as ervas que davam sabor às pastas. Por vezes filosoficamente profundos, embora sempre permeados pela imensa alegria de estar mais uma vez juntos. O Segredo de Brokeback Mountain chocara os homens, e Ang Lee com seus cowboys apaixonados, sensibilidade e belas imagens trouxe à mesa o falso moralismo americano e o nosso, preterido em seguida pela situação política do Estado ou pelos temores comuns aos pais diante da iniciação sexual dos filhos. Outras verdades pequenas ou grandes, íntimas até, iam se expondo em pequenas doses encorajadas não só pelo vinho mas principalmente pela energia propícia do momento, quando a dor já não mais pungente admite a exteriorização que alivia o peito ferido, e oferece aos que ouvem a percepção do salto que engrandece a alma e motiva a vida.

Em volta da mesa, pessoas unidas pelo prazer de degustar o sentimento fiel e delicado da afeição. Em volta da mesa, o sagrado que as palavras, ainda inebriadas, tentam eternizar.

(Escrito em 04/2006)

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1. Nietzsche, citado in OSBORNE, Lawrence. O connainsseur acidental.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Lua Partida



Minha janela II por Sergia A.



Na noite vazia
A palavra me preenche.
De repente, o dia.


domingo, 21 de agosto de 2011

Da série O laboratório: Autômato

Escrever é procurar entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. [1]



9h. Uma senha, um enter, um F2: entrada registrada com sucesso. Bons dias sonolentos dão o tom da manhã e, muito mais que uma expressão de desejo, cumprem o ritual. Computadores entram em rede enquanto o gerente passa adiante o entusiasmo que sacodiu sua madrugada. Leitura de mensagens no e-mail, faxina na caixa postal, revisão de agenda e pendências do dia anterior. Lá se foram os lentos 50 minutos iniciais de aquecimento. 10h. Abrem–se as portas. Clientes ávidos pelo atendimento suspenso há longas horas fazem filas. O som das vozes sonolentas, aos poucos, cede lugar ao murmurinho das solicitações, das queixas, das fofocas, das negociações entre águas e cafezinhos. A agitação se instala dando novo ritmo às batidas das teclas e aos ponteiros do relógio que acelerados, repentinamente, indicam a hora do almoço. Um último aperto de mão, um sorriso amarelo ao insistente que retarda o cheiro de frango grelhado do self-service da esquina. Café e bala de menta devolvem o ritmo dando a largada para o segundo ciclo. O gerente chama, o colega pede ajuda, o cliente reclama, uma cópia, um sinal de fax, uma voz que se altera, um documento se perde e se encontra entre toques estridentes do telefone mantendo o devido compasso entre o stress e o alívio. 16h. cerram-se as portas ao som irritado das vozes atrasadas que perderam aquele precioso último minuto. As teclas continuam seu ritmo acelerado. Mãos apressadas fecham as operações do dia correndo contra o tempo que ainda resta. Uma piada, um comentário maldoso lançado do fundo da sala enrubesce a presença de saias retas e comportadas. Gargalhadas ecoam quebrando a sobriedade do ambiente vazio. 17h30. Mãos delicadas erguem a persiana. A inclinação que garantiu os 40º do meio-dia oferece agora uma nova cor. Raios rubros e audaciosos traspassam o vidro da janela corrompendo o cinza para devolver aos humanos o espetáculo da vida. 18h. Uma senha, um enter e um F2: o registro da saída.9h. Uma senha, um enter, um F2: entrada registrada com sucesso. Bons dias sonolentos dão o tom da manhã e, muito mais que uma expressão de desejo, cumprem o ritual. Computadores entram em rede enquanto o gerente passa adiante o entusiasmo que sacodiu sua madrugada. Leitura de mensagens no e-mail, faxina na caixa postal, revisão de agenda e pendências do dia anterior. Lá se foram os lentos 50 minutos iniciais de aquecimento. 10h. Abrem–se as portas. Clientes ávidos pelo atendimento suspenso há longas horas fazem filas. O som das vozes sonolentas, aos poucos, cede lugar ao murmurinho das solicitações, das queixas, das fofocas, das negociações entre águas e cafezinhos. A agitação se instala dando novo ritmo às batidas das teclas e aos ponteiros do relógio que acelerados, repentinamente, indicam a hora do almoço. Um último aperto de mão, um sorriso amarelo ao insistente que retarda o cheiro de frango grelhado do self-service da esquina. Café e bala de menta devolvem o ritmo dando a largada para o segundo ciclo. O gerente chama, o colega pede ajuda, o cliente reclama, uma cópia, um sinal de fax, uma voz que se altera, um documento se perde e se encontra entre toques estridentes do telefone mantendo o devido compasso entre o stress e o alívio. 16h. cerram-se as portas ao som irritado das vozes atrasadas que perderam aquele precioso último minuto. As teclas continuam seu ritmo acelerado. Mãos apressadas fecham as operações do dia correndo contra o tempo que ainda resta. Uma piada, um comentário maldoso lançado do fundo da sala enrubesce a presença de saias retas e comportadas. Gargalhadas ecoam quebrando a sobriedade do ambiente vazio. 17h30. Mãos delicadas erguem a persiana. A inclinação que garantiu os 40º do meio-dia oferece agora uma nova cor. Raios rubros e audaciosos traspassam o vidro da janela corrompendo o cinza para devolver aos humanos o espetáculo da vida. 18h. Uma senha, um enter e um F2: o registro da saída.


[1] Clarice Lispector

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Primeira Parte: o Laboratório

Cena do filme Hanami - Cerejeiras em Flor, de Doris Dörrie

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo[1]

Vistosa, insinuava-se de longe. Ainda criança, vi um irmão enveredar por seus caminhos. Jovem, plena de certezas, vi uma irmã nela encontrar rumo novo para a vida. Quando incertezas sacudiram o coração, o acaso me apontou a porta. Segui o chamado. E lá se foram 29 anos de vida da empresa e da minha se mesclando, se bendizendo e se amaldiçoando. E de repente me vem este ar nostálgico quando inicio um tempo de preparação para o desligamento.

O antídoto está na palavra escrita que tem sobre mim um efeito mágico. Aprendi a recorrer ao seu pó de pirlimpimpim sempre que a realidade resolve me chacoalhar ou dar seus saltos. É ela, em seus delírios de sons e imagens, que me transporta para qualquer tempo e lugar e me devolve pronta para o tatame ou para o palco. Foi ela que me retirou da angústia de não pertencer ao mundo para o qual eu vendia horas preciosas do meu tempo. Foi por ela que um dia acordei acreditando que havia um sentido em estar ali, que tudo não passava de um laboratório onde as experiências aconteciam sob olhares atônitos.

Em atenção à provocação da palavra me vêm à memória os primeiros experimentos, ainda em 1982, quando lidava diariamente com motoristas de táxi agraciados com uma linha de financiamento de carros a álcool, atendendo uma política econômica do governo federal. Ali trancafiada entre paredes cinza, protegida de sol e chuva, apartada bruscamente da rebeldia com causa da minha juventude, ouvia histórias que recendiam o suor forte das ruas. Lentamente, por meio da palavra mais do que por números, me descobria não ser nada. Apenas uma peça na grande engrenagem que negocia sonhos que só o capital é capaz de prover.

O laboratório em que tais experiências se processaram em um tempo que hoje chamo primeira parte da minha vida se fez presente ao ver o filme Hanami – Cerejeiras em Flor (Alemanha, França 2008) em que uma diretora alemã, Doris Dörrie, se utiliza de dois preciosos símbolos da cultura oriental, o festival de cerejeiras japonês e os movimentos da dança “Butô”, para retratar um mundo onde a vida se perde pela falta de lucidez na percepção dos acontecimentos a seu redor. Tratando dos inúmeros dramas da pós-modernidade entre eles a proximidade e falta de comunicação, o filme de forma delicada leva à reflexão sobre como a vida pode ser intensa em seu tempo finito, quando tomamos consciência de que nada somos além dos sonhos que nos alimentam.


[1] Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) in Tabacaria, 1928


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Valor do Afeto

 
O retrato


Havia um retrato em preto e branco pendurado na parede da sala de estar. Seu olhar me acompanhava pelos corredores. Seu olhar capturava minhas intenções de travessuras. Seu olhar me censurava. Seu olhar me acalentava. Isso me vem à mente agora, repentinamente, quando leio em uma revista um artigo sobre as polêmicas decisões judiciais quanto a ineficácia da indenização por dano afetivo nos processos movidos por filhos contra pais ausentes, pelo entendimento de que a indenização não restabelece o afeto perdido.

O universo de pais e filhos e a corajosa busca pelo afeto perdido é também o que retrata o documentário Meu Arquiteto (2003), do cineasta Nathaniel Kahn, sobre a vida e obra do arquiteto Louis Kahn (1901-1974). Falando de arte e amor, o filme é um mergulho profundo na obra para compreender o homem. Um mergulho capaz de promover o encontro do filho com o pai 25 anos após a morte deste, a partir de uma necessidade do filho de entender a ausência do pai durante os 11 anos que poderiam ter convivido.




Três realidades distintas alinhadas pela mesma ausência. Três formas distintas de buscar a recomposição de uma relação de afetividade interrompida. Assim como o documentário, a lembrança do retrato na parede é a materialização da reaproximação que alguns de uma maneira tosca buscam na justiça. Fica, no entanto, a certeza de que o valor do afeto está nos laços que podem ser construídos em cada manhã, desde que estejamos abertos para a vida.

Feliz Dia dos Pais!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

O Rio

Rio Poty em Teresina-PI por Paul Bentley


um rio corta, sereno,
a agitação da cidade
em suas águas remo.

domingo, 7 de agosto de 2011

Descomeço

O futuro não está fora de nós
            mas dentro
            como a morte
            que só nos vem ao encontro
            depois de amadurecida
            em nosso coração.
            E no entanto
                                   ainda que unicamente nossa
                                   assusta-nos. [1]


A grande causa do mundo contemporâneo parece ser o direito de ser feliz. Acabo de ler em uma revista semanal a notícia de que a ONU aprovou resolução que reconhece a busca da felicidade como uma aspiração universal. Entendendo a abrangência do tema e concordando plenamente com seu propósito, hoje nado contra a corrente e peço licença para ter o direito de deixar que uma lágrima molhe o meu rosto e que meu olhar se distancie.

Havia programado para esta data uma postagem especial que lembrasse os ritos de passagem, marcando o alvorecer do primeiro ano da segunda parte da minha vida. O texto deveria ter o tom alegre e eufórico das conquistas, pois neste ensolarado 07 de agosto tem início uma contagem regressiva de 365 dias para o fim de um contrato que direcionou os rumos da primeira parte. Uma gestação de 52 semanas, com direito a uma intensa retomada daquilo que nutre e move minha energia vital. Uma preparação para uma nova jornada. No entanto, como diz a voz que alimenta minha alma neste instante, as surpresas são componentes importantes delas.

A despedida de um amigo, subitamente imposta na manhã de ontem, muda a cor desse discurso. Talvez um trágico toque de realidade necessário ao entendimento de que não há começos sem um fim que o antecede, e de que os fins sempre se vestem de tons acinzentados, embora seja a perspectiva desse fim que nos faça perceber os tons multicoloridos do percurso. Talvez uma forma de lembrar que este começo que ora planejo só é possível porque não estava sozinha no trajeto que agora entra em reta final. Ao meu lado caminharam pessoas cujo convívio impulsionou atitudes, alargou horizontes e permitiu o crescimento que só acontece quando olhamos de perto o diferente e aprendemos a domar o ego em respeito à visão do outro. Talvez uma forma de lembrar que observar a natureza foi o método encontrado pelo homem para se descobrir parte dela e se reinventar seguindo seus movimentos cíclicos, capazes de criar na mente humana a acalentadora sensação de que tudo pode recomeçar.

Amanhã, o futuro que se fortalece dentro de mim contará esse dia como passado e certamente meu olhar, não mais embaçado, terá como foco um renascimento em busca da felicidade.


[1] Ferreira Gullar in Em alguma parte alguma

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Elo


Igreja N.S.Conceição, Pedro II-PI por Francisca Bentley


em uma torre 
a cidade se esconde
entre horizontes 

manchados de azul.
sob a janela sonhos 

em ponto de partida.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Imperfeição Nossa de Cada Dia


Barney's Version (2010), por Richard J. Lewis
A Minha Versão do Amor (na tradução brasileira)
Fonte: YouTube

Minh’alma, como o oceano,
Tem tufões, correntezas,
E muitas lindas pérolas
Jazem nas profundezas.[1]


Há algum tempo recebi do jornaleiro, entre as remessas semanais que ele gentilmente me faz, uma revista cuja matéria de capa me prendeu a atenção pela chamada em letras brancas sobre fundo vermelho: “O passado é uma prisão”. Por coincidência, dias depois vi na TV uma entrevista do astrofísico Marcelo Gleiser em que ele falava do tempo como uma ferramenta inventada pelo homem para medir as transformações de si próprio e da natureza ao seu redor. Não pude deixar de associar essas definições ao ver o filme Barney`s Version (2010), ou A Minha Versão do Amor na tradução brasileira.

O conteúdo da matéria de capa era bem mais restrito do que o título sugeria. Tratava da nostalgia ou apego doentio a acontecimentos passados que acomete algumas pessoas, ou todos nós em algum momento, impedindo aqueles que se perdem em suas armadilhas de avançar rumo ao melhor da vida que é simplesmente viver o tempo presente. De qualquer forma, não há como fugir das experiências vividas, das transformações que acumulamos ao longo dos anos, ou daquilo que convencionamos chamar de tempo passado. O encarceramento, no entanto, talvez dependa menos dos fatos vividos do que da forma como a narrativa desses fatos é construída, a partir de uma visão que é unicamente nossa. É precisamente o ponto de vista de um anti-herói sobre o passado que o diretor canadense Richard J. Lewis traz às telas em um filme dedicado ao escritor também canadense Mordecai Richler, morto em 2001. Como no livro Barney`s Version, de autoria do homenageado, que o roteiro toma como base, o protagonista boêmio, fumante e politicamente incorreto, aos sessenta anos, narra de forma irônica e com a dose certa de humor os tropeços, os dilemas e os acertos de uma vida um tanto desajustada mas que se aproxima dos atropelos nossos de cada dia. Daí a simpatia que suas imperfeições despertam no espectador.

O filme traz, ainda, outras referências literárias que vão além da adaptação e nos ajudam a compreender o universo das personagens e abstrair um significado. A pista de uma delas está presente na cena do trem quando Mirian, a mulher que viria a ser a terceira esposa e o grande amor da vida do protagonista, lê o livro Herzog de Saul Bellow (mais um canadense) no qual o personagem principal, judeu e neurótico como Barney, entra em crise quando sua segunda esposa o trai com seu melhor amigo. No filme um fato semelhante é a redenção e o infortúnio de Barney: uma oportunidade de por um ponto final no segundo casamento, mas ao preço de perder o melhor amigo e conviver com a acusação de um crime que nem ele mesmo tem certeza de não ter cometido. Outra é a cena que antecede a morte do melhor amigo, quando Barney exige que ele testemunhe a seu favor no processo de divórcio provocando uma discussão na qual o amigo sugere que ele leia “A Vida de Heinrich Heine”, o poeta judeu alemão por muitos descrito como estranho, triste, sarcástico e ambivalente cuja visão das contradições humana inspira este texto.

Narrar talvez seja, portanto, um exercício de compreensão de si mesmo e do mundo que o cerca. Heine, no século XIX, a partir de suas próprias contradições encontrou na narrativa sarcástica o tom para tecer uma crítica aos rumos da sua cultura e sociedade, assim como Richler encontrou na auto-caricatura uma narrativa irônica para desnudar o homem contemporâneo em seus dilemas éticos, ou Bellou por meio de seus personagens desajustados encontrou uma narrativa tragicômica para descrever a busca por um humanismo contemporâneo. Fica no fim do filme que dialoga intensamente com tais narrativas a amarga certeza de que a perfeição não cabe a nós, tolos seres humanos, mas que há um caminho quando o olhar para o passado é um ato libertador que permite no presente encontrar pérolas sob tufões e correntezas.


[1] Heinrich Heine, tradução de Manuel Bandeira