domingo, 31 de julho de 2011

sábado, 30 de julho de 2011

Entardecer

Luis Correia-PI por Sergia A.

Caindo sobre o mar
A tarde em vestes douradas
Chama a navegar.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Por uma Vida Significativa

"No fundo, a vida não passa
de uma constante tensão entre acaso e necessidade.”
Ferreira Gullar
                              

A palavra não foi feita para ser solitária, dizia o texto de autoria desconhecida que recebi de uma amiga. Um poderoso argumento para explicar a nossa necessidade de significação e o quanto tal significado ganha força quando nos permitimos ser complementados pelo outro. Como no poema cujo encantamento reside na forma como palavras soltas saem do dicionário e se agrupam para ganhar asas na imagem poética criada. Ao ler o texto não pude evitar que me viesse à mente o cultuado filme Revolutionary Road – 2008 (Foi Apenas um Sonho, na tradução brasileira), do cineasta britânico Sam Mendes, cujas personagens centrais – o Sr. e a Sra. Wheeler - se perdem nesta busca pelo sentido da vida.



A fonte inspiradora do filme foi o livro homônimo de Richards Yates (1927-1992) que de forma realista (ou pessimista como querem alguns) traça um retrato dos anos cinqüenta nos Estados Unidos, quando o “sonho americano” se instala trazendo aos subúrbios (onde vive o casal) o forte desejo de conformidade: uma boa casa, um carro e filhos saudáveis ainda que mantidos por um trabalho medíocre. Uma espécie de cegueira e de busca pela segurança a qualquer preço, enterrando em terreno estéril a semente de uma vida com significado especial. Yates disse certa vez em uma entrevista que o título “Revolutionary Road” – o nome da rua do subúrbio onde vivem Frank e April, seria uma metáfora aos rumos que os ideais da independência americana seguiram, encontrando seu fim em uma limpa rua arborizada de um subúrbio qualquer de uma grande cidade na década de 1950. Lançado em 1961, o livro provoca em seus leitores certa inquietação, a angústia necessária para desestabilizar o que hoje administradores e psicólogos chamam “zona de conforto”. Sem dúvida, tal inquietação, não apenas a provocada pelo livro, mas aquela que se tornaria coletiva durante toda uma década e levaria uma geração inteira a se perguntar qual o sentido da vida, revolucionou costumes deixando para as gerações seguintes um poderoso legado.

No filme a desintegração do sonho de uma vida significativa é acompanhada, ou tem origem, pela completa desarticulação do casal. Mais que no amor, a união se fundamentava no sonho comum, na admiração que o desejo de fugir de uma vida confortavelmente morna despertava no outro. Na medida em que o sonho se individualiza, e o estar juntos caminha para a sufocadora mesmice da estabilidade, a poesia se perde para sempre. Frank e April tornam-se palavras soltas cujos sentidos estão estagnados em dicionários nas estantes pouco freqüentadas. O acaso, muitas vezes revelador da sensibilidade extra que nos faz perseguir a realização de algo especial não acontece, deixando prevalecer a necessidade que nesse caso não se faz suficientemente forte e capaz de curar a cegueira. O fim desenhado para o filme realça a profundidade do trágico comodismo, provocando nos expectadores a angústia reflexiva que extrapola o questionamento individual sobre o sentido da vida. Talvez apontando para a angústia coletiva que vive neste momento o povo americano ao ver o seu sonho se desintegrando diante de uma economia que não mais suporta o estilo consumista e individualista de ser, nem tampouco permite que se mantenha a arrogante posição unilateral no seu relacionamento com o mundo.

Encontrar uma saída para a angústia da não significação, individual ou coletiva, talvez passe pelo mesmo processo da palavra que para ser carregada de sentido precisa perder sua condição estagnada, confortável e solitária de dicionário para encontrar no outro a plenitude solidária, se não por acaso mas por necessidade.

( fev/2011 )

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Há um Segredo

“É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã.
Porque se você parar prá pensar, na verdade não há” [1]



Foto: NASA / Divulgação


Aprendi na escola, há anos, que uma explosão deu origem ao tempo, espaço e à matéria. Os livros me diziam que a vida, como a conhecemos, surgiu sob condições muito especiais espontaneamente reunidas na rica sopa que formava os oceanos primitivos. Um compenetrado estudioso da astrofísica diz, poeticamente, em um programa de TV que nada mais somos do que poeira de estrelas. Penso nisso enquanto escuto previsões catastróficas para o futuro do planeta, ou enquanto acompanho os efeitos das mudanças climáticas nos vários cantos do mundo, ou enquanto a inteligência reunida em Copenhague decide não decidir, ou enquanto placas tectônicas se acomodam em natural movimento causando destruição na superfície. Penso na vida que se autodenomina homem, pretenso senhor da Terra e do seu destino. De tanto pensar sinto a angústia de saber que entre mim e você leitor há um segredo que não ousamos revelar.

Se um acaso a gerou e não se tem, ainda, certeza de sua existência em outro ponto do universo, a vida é uma preciosa raridade. O que não deixa de ser um paradoxo diante da realidade cotidiana repleta de banalidades que nos faz passar por ela sem pensar. Entre trivialidades outras, para preencher um dia de folga no trabalho, mecanicamente folheio uma revista que me diz que a diferença genética entre homens e chimpanzés é de apenas 1%. Ou seja, a inteligência surgiu da evolução natural da vida. Pequeno detalhe que torna a raça humana única na imensidão cósmica, e perpetua atavicamente o traço egocêntrico. Um traço que a levou a dominar o fogo e em conseqüência ocupar o planeta como se este lhe fosse um presente dos deuses, uma generosa dádiva para satisfação de suas necessidades infinitas. A inteligência e sua extensão tecnológica avançaram a passos largos dividindo cada palmo da Terra, dominando seus recursos, decidindo, às vezes de forma violenta, quem teria direito ao usufruto. Irredutível, segue seu caminho na seqüência de dias banais por ela denominados anos, séculos, milênios que correm em fluxo para alimentar o que chamam de história. Para isso inventaram relógios na tentativa de apreender o tempo ou dar asas à tola ilusão de controlá-lo. Ora, esquece a inteligência que não são os ponteiros que fazem nascer ou findar o dia, ou os calendários que fazem mudar as estações. Com ou sem relógios, enquanto houver sol, a inclinação da luz dará um tom alaranjado ao despertar do homem ou cobrirá de negro as suas noites. Com ou sem calendários, os campos se vestirão de flores na primavera e as folhas cairão no outono, graças a um movimento natural que influencia a vida na terra, a dança dos astros no universo em expansão.

Certo dia, ao vê-la de longe, a inteligência embevecida repetiu atônita que a terra é azul. O distanciamento permitido pela tecnologia revela o seu valioso mundo como apenas uma bola coberta por um gigantesco manto azul. Alheia, a bola flutuante segue seu curso iniciado há milhões de anos, em um constante processo de transformação. De rochas fumegantes à glaciação, da pangeia aos diversos continentes, dos dinossauros ao homem deixa marcas em cada era. Entre elas a marca tranqüilizadora de um espesso manto azul que vem garantindo no fluxo do tempo a existência da vida e da inteligência. E, heroicamente, a inteligência se dá conta de que nada mais é do que um ponto protegido por um imenso manto azul. Diante da certeza de sua pequenez nada a fazer senão ficar atenta a cada possibilidade de prolongar e intensificar o doce sabor da vida.

Sob o manto azul um beija-flor invade uma janela florida em mais um gesto banal. O bico alongado, em desespero, busca energia para manter o movimento de suas asas frenéticas, satisfazendo o desejo instintivo de preservar a vida. Na mesma janela um bicho homem, em desespero reproduz o desejo, buscando respostas para o seu enigma. A inteligência madrasta copiando o passado afirma que o tempo, o espaço e a matéria prosseguirão. A vida, quem sabe, talvez em novo modelo desenhado pelo acaso. Fará o homem parte dessa vida? Este é o segredo que você e eu, legítimos representantes da espécie, tememos desvendar. Enquanto isso, oramos aos deuses pelo despertar alaranjado da inteligência sobre o véu negro da noite.
( maio/2010 )

[1] Renato Russo in Pais e Filhos

terça-feira, 26 de julho de 2011

Em louvor a quem ousa ser mãe de mãe

Louvo a vida
que um dia se fez mãe
para doar-me vida

Louvo a vida
que um dia me fez sã
capaz de gerar vidas

Louvo a vida
que de mim brotando
fez-se nova vida

Louvo a vida
que entre risos meigos e lágrimas vãs
segue seu curso
transformando vidas.

( maio/2009 )

Por que Amy deve morrer?


And life is like a pipe
And I'm a tiny penny rolling up the walls inside .”[1]

(Amy Winehouse in Back to Black)

Recorte de infinito, por Sergia A.

 

Noite de sábado. Risadas e silêncio entre copos de cerveja na noite a céu aberto. As palavras vão e voltam direcionando-se sempre ao ponto central: o brilho e o destino trágico de Amy. Nas apostas, de gosto duvidoso não deveria passar dos 27 anos, como os demais cuja genialidade não suportara o peso de uma vida dita normal, e o olhar para si e para o mundo tornara-se uma intensa agonia. Jimi, Janis, e Jim personificaram os excessos produzidos por uma geração a quem devemos, entre outras coisas, uma revolução nos costumes. Kurt e Amy viveram outro tempo, mas cada geração traz a sua própria dor e os ícones da sua angústia.

Conheci a arte marcada pela voz poderosa de Amy quando ganhei de presente de uma menina de sua geração uma gravação em mp3, com faixas dos discos Frank e Back to Black. A menina tatuada, de aparência despojada e bem distante do padrão ditado pelo cultuado mundo fashion era extremamente inteligente e com grande talento para o trabalho especializado que desenvolvia como estagiária no Banco. Era fã de Amy e isso criou um elo entre nós fortalecido pelas longas conversas que seu gosto pela música que dialogava com os clássicos da black music americana proporcionou. Seu tempo no Banco acabou. Ficou a doce lembrança da menina solitária que tentava afogar nas baladas uma história de vida bem maior e mais pesada que seus anos. Compreendi que Amy, de certa maneira, materializava essa angústia que se apodera da sutileza que diferencia.

Como em um filme que vemos muitas vezes, conhecemos de perto as personagens e as tramas que compõem o enredo, e de certa forma vivenciamos o dilema do autor/diretor ao decidir se a personagem deve viver ou morrer. A vida da personagem torna-se insustentável quando preencher as horas do seu dia na trama é um passo no escuro ou quando a mudança de tamanho é tão abrupta que o tempo do filme não  comporta a ousadia. Seguindo o roteiro Amy não poderia viver.

24/07/2011
[1] Uma possível tradução:  “E a vida é como um cano / e eu sou uma minúscula moeda rolando parede adentro.”

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Abril Despedaçado: liberdade e reinvenção da vida

“Procurei arquitetar Abril Despedaçado na oposição entre estados diferentes.
Entre a imobilidade e o movimento..."
(Walter Sales – Diretor de cinema)
                  
Em uma das longas tardes de dores e imobilidade impostas por um abril que deixou em pedaços alguns dos meus ossos, li em uma revista algo sobre a publicação do livro “Berlin nach dem Krieg” (Berlim depois da Guerra – em tradução livre). Uma reunião de imagens capturadas nas ruas de Berlim nos dias que sucederam à rendição nazista. Prendeu-me a atenção um registro do fotógrafo Otto Donath, que a repórter poeticamente chamou “sinal de vida”: uma mulher, vestindo apenas um maiô, regava uma pequena horta e vasos de flores em seu terraço tendo ao fundo os escombros dos prédios destruídos. Era primavera. A vida recomeçava.

O abril alemão que antecedeu à fotografia foi marcado por intensos bombardeios e um assalto implacável do Exercito Vermelho sobre a cidade de Berlim. As tropas aliadas despedaçavam pontos estratégicos do poder nazista para forçar a rendição de Hitler e o fim da guerra. De uma forma truculenta tirava o povo alemão da imobilidade que o fascínio nazista produzia, levando-o ao movimento de despertar para reconstrução da vida e da paz. A quebra das amarras que restringiam a liberdade de pensamento permitia agora a livre expressão como um ato simples de vestir um maiô, tomar sol e cuidar do jardim. Como o personagem Tonho do filme Abril Despedaçado de Walter Sales (2001) - de quem roubo o título, imagino, o povo alemão no seu íntimo sentia a mesma angústia de ser obrigado a cumprir um destino que não escolhera, a dar continuidade ao derramamento de sangue quando queria simplesmente viver. Assim como o herói do livro homônimo do albanês Ismail Kadaré cujo drama interior, ocasionado pelo embate entre a obrigação de cometer um crime e o destino que o impele para a vida, inspirou o filme. Há, portanto um sentimento que emana da arte que retratou o instante, da literatura que teceu uma história de tema universal como o poder, a vingança e a morte, e do filme que utiliza uma realidade local (a guerra entre famílias no interior do Ceará) para aprofundar a reflexão sobre os sentimentos experimentados pelo homem diante da ausência da liberdade de escolha ou diante da morte. Um sentimento que os unifica, tornando-se o fio condutor da percepção de quem se permite ser tocado pela arte ou pelos fatos da vida.

Ao fim de um abril que não vi passar, o mesmo sentimento chega até mim e impulsiona a escrita. A impulsão para a vida que faz superar a imobilidade e encontra formas de reinventá-la, nasce da certeza de que a própria vida se recompõe e aponta caminhos para novos movimentos, e de que o trágico que imobiliza é no mínimo um ponto de partida.

Teresina, 08/05/2010

Sobre o Prazer de Celebrar o Amor


“"Viver é decifrar enigmas”
(Ariano Suassuna in O Romance d’A Pedra do Reino)        

         
Foto: Cândido Neto


Há um ano, quando minha filha me confidenciou o desejo de fazer do seu casamento uma grande festa muitas coisas me passaram pela cabeça. Entre elas a firme convicção de que uma festa assim seria um desperdício considerando a sua natureza tão efêmera. E de que talvez o esforço para realizá-la fosse melhor aproveitado investindo-se em uma bela viagem pelo caráter duradouro das mudanças que provoca. Do alto das minhas certezas não conseguia vislumbrar o quão prazeroso seria mergulhar no grande enigma das celebrações, e quão valioso é ter motivos para celebrar.

Dava-se início, então, a uma jornada de infinitas surpresas. A primeira delas o reencontro com um velho amigo de origem germânica. Com ele aprendi que a língua alemã, em sua complexa estrutura, tem uma palavra composta para descrever a cerimônia de casamento: “hochzeit”, que agrupa dois termos carregados de significados, hoch=elevado e zeit=tempo. Despediu-se desejando que nós tivéssemos muito prazer na tarefa de preparação. Só mais tarde compreendi a grandiosidade desse recado, ao perceber ser esse um tempo que se eleva por ser um tempo de pequenos acontecimentos diários que nos obrigam ao contato constante. Discutir detalhes em horas de conversas ou troca freqüente de mensagens eletrônicas, tomar decisões compartilhadas sobre a cor da decoração, o papel do convite, o tipo de cerimônia, o local. O que à primeira vista pode parecer futilidade torna-se um grande aprendizado sobre o respeito e a tolerância, o saber ouvir a voz do outro, o saber dizer o contraditório, administrar pequenos conflitos, transformando-se em um grande exercício do diálogo que resgata a convivência entre as pessoas e ajuda a fortalecer relacionamentos.

Detalhes que parecem pequenos e fáceis de serem resolvidos tomam proporções gigantescas e vão dando a dimensão do que é realizar sonhos. É assim que a escolha do espumante deixa de ser uma questão de fornecedor ou de preço para tornar-se motivo da reunião de amigos, de pesquisa e aprendizado sobre o seu processo de fabricação, revelando o prazer das pequenas descobertas. É assim que a lista de convidados, limitada pelo tamanho do bolso, deixa de ser uma simples relação de nomes nos conduzindo a uma reflexão sobre a importância das pessoas em nossa vida. Quando se foge da mediocridade de ver essa oportunidade como a chance de manter uma rede de contatos e define-se como critério de seleção a proximidade, a relação de afetividade, cada nome da lista vem acompanhado de boas lembranças, de rostos acolhedores, de histórias de vida e de vidas que fizeram parte da nossa história. É assim que a intenção de relaxar, na noite anterior ao evento, se transforma em uma oportunidade ímpar de abrir a garrafa de um vinho especial para estimular uma conversa animada entre mulheres de três gerações com tão poucas oportunidades de se perceberem sem a marca do tempo e sem o peso das máscaras de avó-mãe-filha.

A duração da cerimônia e da festa, como que a desafiar minha tola ignorância, ultrapassa as medidas previamente definidas. O poder de transformar extrapola o individual proporcionado pelas viagens e atinge o coletivo. A alegria de ver o que um dia foi apenas imaginação, materializado e cumprindo a sua função de emocionar pela beleza é certamente imensurável. Como imensurável é a alegria de sentir a presença de amigos, de perceber que as pessoas não apenas atenderam ao seu chamado mas prepararam o espírito para viver aquele momento. Como imensurável é o prazer de ser contagiado pela energia do encontro. Como imensurável é o crescimento advindo do mistério dos sonhos que se realizam. Como imensurável é sentir a vibração da celebração do amor que retira nossa existência de sua natural pequenez para enriquecê-la de sentido.

Hoje, gratificada, com uma voz encantadora ainda ressoando no ouvido o refrão “Valeu à pena êh...êh...valeu à pena... êh...êh...sou pescador de ilusões...” e sentindo no peito a saudade gostosa que só visita o coração de quem ousa viver, entendo que efêmera, afinal, é a vida. Desvendar os seus enigmas no tempo que nos é dado é intensificá-la ao ponto de parecer eterna.

Teresina, 14.11.2010

domingo, 24 de julho de 2011

Direito de olhar as nuvens


Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta nem me martiriza.      
Por ser estreita a senda – eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Sou dono e senhor do meu destino.
Sou o comandante da minha alma.

(W. E. Henley in Invictus - Trad. de André C.S. Masini)
               

Distante azul, por Sergia A.


Um dia desses recebi de uma amiga uma crônica atribuída à Danuza Leão, que falava das exigências do nosso tempo e da total falta de liberdade para dedicar-se ao prazer das pequenas coisas, como deliciar-se com a sobremesa preferida sem sentir culpa pelas calorias ingeridas, sentar no sofá, apagar a luz e ouvir a musica que nos emociona sem pensar no tempo que poderia ter sido dedicado a algo mais produtivo, ou ainda deitar-se numa rede e ler aquele livro que está na cabeceira há tempos esperando um bom momento que nunca chega sem angustiar-se pelo quanto as horas de sono perdidas interferirão no desempenho do trabalho no dia seguinte. Fiquei pensando nos valores preconizados pelo modo de vida acelerado em que embarcamos e o quanto as tais pequenas coisas ganham outra dimensão quando se muda a perspectiva do olhar.

O fato é que vivemos um tempo repleto de contradições. A informação se multiplica e se renova a cada instante e nosso cérebro treinado para processar e reter entra em colapso pela angústia de não conseguir manter-se no domínio. Ao desejar a perfeição em todos os campos em que atuamos afrouxamos as rédeas da nossa própria vida, delegando-as à louca roda-viva como se isso não fosse uma escolha nossa. No entanto, há sempre uma escolha. Nesse momento em que o prazer de ver um esporte nos obriga a olhar para a África do Sul, me vem à mente a escolha de Nelson Mandela, a escolha que não permitiu que décadas de prisão e trabalho forçado subjugassem a sua mente, a escolha que não permitiu que sua alma cedesse à submissão ou à sede de vingança.

Sabiamente, no tempo de confinamento, em meio ao cansaço físico pelo trabalho nas pedreiras, Mandela escolheu estudar a cultura do opressor. Era preciso entendê-la para montar estratégias de combate. Paralelamente, se permitia o pequeno prazer de encantar-se com a poesia do inimigo. Ali encontrou o alimento para sua alma brutalmente machucada. Na leitura prazerosa, tantas vezes repetida, do poema inglês Invictus (1875), que inspirou o filme homônimo de Clint Eastwood (2009) e hoje inspira este texto, Mandela garantia sua sanidade e fortalecia o sonho de liberdade, não da sua individual, mas de uma nação inteira. No filme, baseado no livro Conquistando o Inimigo do jornalista inglês John Carlin, um Nelson Mandela, já presidente, supera a resistência dos seus aliados e escolhe o perdão e a reconciliação como um caminho para a unificação do seu país, usando novamente como arma a cultura e o prazer do inimigo: o campeonato mundial de Rúgbi. Aprendera com a mudança de perspectiva que a palavra, o perdão e o prazer eram armas bem mais poderosas que as usadas por seu povo na época do confronto.


Invictus, by Clint Eastwood
Fonte: YouTube


Como essa, a História da humanidade está recheada de pequenas histórias de vida inspiradoras. Vidas que, independente do combate diário, não se deixaram diluir no mar furioso do tempo porque souberam diversificar o olhar sobre as pequenas coisas, conscientes do seu direito ao prazer sem culpa. A experiência que o tempo me presenteia sopra baixinho no meu ouvido dizendo que o acaso existe para nos apontar caminhos e que escolhas satisfatórias estão sempre baseadas na paz de espírito, cujo segredo repousa em fontes pequeninas. Aquelas que se acompanham de um brilho no olhar, e que nos induzem a valorizar apenas o que encontra eco no nosso íntimo. Há, portanto, que se enaltecer as palavras do poeta que desafiam a inexorabilidade do tempo, e reafirmar que se tornar senhor do destino significa, antes de tudo, não abdicar do comando da alma.

Teresina, 01.07.2010