sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Réveillon


Amanhecer em Holmes Chapel-UK, por Francisca Bentley



Rubro o dia avança,
Abre frestas nos telhados
Renovando a dança.


terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Entre Dois Mundos



Stranger than Fiction (2006),  por Marc Forster
Fonte: YouTube

“Beijos escritos não chegam ao seu destino,
os fantasmas os bebem pelo caminho”
[1]


Última semana de 2011. Teresina adormece sob os trinta e cinco graus de temperatura enquanto suas ruas se esvaziam. Seus habitantes estão ávidos por mar, pela abençoada brisa do mar, pelo poder relaxante do cantar de suas ondas vencidas em sete pulos, pelas promessas de amor em barras rubras amanhecido. De longe escuto o rumor de seus passos. Pela primeira vez em muitos anos não sentirei sua água morna acordando mais um ano, mas posso sentir seu cheiro se fechar os olhos, ou participar de eventos pelo mundo se ligar meus brinquedos tecnológicos e me contentar com o não real, com a ficção da qual posso ser personagem ou autor.

No correr dos nossos dias, há momentos em que já não sei onde está a intensidade da vida. Se no mundo real ou no virtual, se o virtual é uma representação do real ou se o contrário é que é verdade. Se o que me dizem as mensagens eletrônicas prolixas em seu espaço reduzido, e sem olho no olho, é mais verdadeiro do que a concisão dos gestos comedidos entre palavras secas e olhares apressados.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Instantes de Infinito


Uma luz,  por Sergia A.

Mais um ano chega ao fim. Não há como viver esse tempo sem repensar a vida. O que fazemos dela a cada dia, como pretendemos vivê-la no novo ciclo. O que precisa ser acrescentado, o que precisa ser descartado ou até, quem sabe, o que precisamos simplesmente deixar fluir pois não temos o controle sobre tudo.

A arte, e a poesia em particular, tem o poder de nos salvar nesses momentos. Por isso busco nas palavras de Da Costa e Silva, um poeta Piauiense como eu, uma forma de desejar aos que navegam em busca de palavras delirantes, que em 2012 se realizem seus instantes de infinito, que a semente de seus sonhos seja atirada ao mundo, e que as asas de seus pensamentos rocem o céu.
  
Sob o Ritmo do Tempo

A areia, grão a grão, escoa na ampulheta...
Sob o ritmo do tempo, em silêncio medito:
Ai de quem, a sofrer, passou pelo planeta
Sem realizar o seu instante de infinito!

A água cai, gota a gota, a oscilar na clepsidra...
Atento ao seu rumor, penso inquieto e tristonho:
Ai de quem não arou com pranto a terra anidra,
Para atirar ao mundo a semente de um sonho!

A sombra leve azula a pedra do quadrante...
Cismo, absorto, a seguir-lhe o tardo movimento:
Ai de quem, a viver como uma sombra errante,
Não roçou pelo céu a asa de um pensamento!


E que este espaço continue sendo nosso local de encontro!       

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Alma Gêmea


Dois lados de mim,  por Sergia A.


Um: escuro inverno
Outro: luminoso verão
Entre: um sopro terno


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O Chocolate Encontra Adélia


Pura Sedução,  por Sergia A.


 Nenhum pecado desertou de mim
Ainda assim eu devo estar nimbada,
porque um amor me expande.
Como quando na infância
eu contava até cinco para enxotar fantasmas,
beijo por cinco vezes minha mão.
Este é o meu corpo,
corpo que me foi dado
para Deus saciar sua natureza onívora.
Tomai e comei sem medo,
na fímbria do amor mais tosco
meu pobre corpo
é feito corpo de Deus [1]


Dezembro tem cheiro de encontro. São tantas as fragrâncias que não cabem em seus dias. Parece que todos esperam esse tempo de obrigação e se apressam por recuperar o não dito em onze longos meses. O mais interessante são as formas criativas encontradas para superar essa nossa dificuldade de dizer o que devia ser dito entre aromas de café da manhã.

Entrando nesse clima, participei essa semana de uma confraternização de mulheres que se dão o direito de perfumar suas palavras não ditas com a doçura do chocolate. Sem culpa. Pura sedução para escapar do automatismo. Puro prazer de estar juntas também em doces momentos que suavizam e religam nossas vidas fragmentadas.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Veia Aberta


Poente além do Vidro,   por Sergia A.


O dia escorre
Na moldura da janela,
Viscoso, sem corte.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O Lugar mais Underground que eu Conheço não é o Inferno


E lá se foi o quarto mês do primeiro ano da segunda parte. De repente me vem à lembrança pessoas que comigo iniciaram a jornada na primeira parte, mas que a certa altura ousaram tomar rumos diversos.

Fonte: YouTube


Perambulando pela rede certa noite dessas (devo confessar: não vivo sem ela) vi uma referência ao CD Antídoto do Emerson Boy. Latentes na memória, as imagens de uma noite, no mínimo irreverente, se materializaram rapidamente.

O convite para prestigiar o show de um amigo dos tempos da faculdade de engenharia e também dos primeiros anos de Banco, que ousara arriscar o certo pelo incerto correndo o mundo em busca de um sonho, parecia ser uma boa alternativa ao tédio dos restaurantes normalmente freqüentados nos sábados à noite. O programa parecia inspirador para quem desejava jogar pro alto a seriedade sombria de uma semana de trabalho e por algumas horas deliciar-se com conversas sem rumo entrecortadas por lembranças provocadoras de boas risadas. Lembro-me que não entendi a cara de espanto das minhas filhas quando, já de saída, anunciei aonde iria naquela noite. Assustadas com a confirmação, decretaram uma mudança urgente, necessária e radical no visual: jeans preto, blusa preta, prata, muita prata nos dedos, braços e orelhas, era o que pedia o conceito “trash” do lugar.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Advento


Poderosa Fragilidade, por Sergia A.

Abre docemente
Pétalas a descerrar
A luz, de repente


sábado, 26 de novembro de 2011

Quando o Amor não Envelhece


Imagens do filme City Lights (Chaplin - 1931)
Luzes da Cidade, na tradução brasileira
Voz: Zeca Baleiro em musicalização do poema de e.e. cummings
traduzido por Augusto de Campos
Fonte - YouTube


"somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously)her first rose."
[1]


Pode parecer pieguice, mas o amor me encanta. Não consigo conter as lágrimas nas cerimônias de casamento, convencionais ou nem tanto. O fato é que não resisto a belas histórias nos romances, nos filmes, nos poemas, na delicada intimidade das cartas trocadas entre amantes e publicadas postumamente. E, até mesmo nas sérias revistas semanais que abrem espaço para notícias singelas como a história do casal que se reencontrou 50 anos depois do primeiro encontro e descobriu que o amor não vivido, resistiu aos reveses da vida. Talvez o que torna essas histórias preciosas seja a sua raridade, pois concordo com o que diz uma velha canção americana imortalizada para nós brasileiros na voz de Renato Russo: “Love is rare. Life is strange. Nothing last. People change".[2]

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

servos altos e ignorantes



Janela do Anoitecer, por Sergia A.


O poeta americano e.e. cummings (1894-1962) conversa com minha alma. O estranhamento de seus versos desalinhados exerce sobre mim um grande fascínio. A matéria dos seus poemas não é só a palavra, é gesto, é forma, é grafia, é espaço como servos silenciosos que dizem o não dito. Sua leitura, um desafio necessário. Sua tradução, se é que a poesia é traduzível, um exercício e um atrevimento sem perdão.


if you like my poems let them
walk in the evening,a little behind you


then people will say
"Along this road i saw a princess pass
on her way to meet her lover(it was
toward nightfall)with tall and ignorant servants."

***

se você gosta dos meus poemas deixe-os
caminhar no anoitecer,um pouco atrás de você


assim as pessoas dirão
“Ao longo dessa rua eu vi passar uma princesa
em seu caminho para encontrar o amante(era
perto do cair da noite)com servos altos e ignorantes.”


(if you like my poems let them, e.e. cummings in Complete Works 1904-1962 Volume Miscellaneous
Tradução: Sergia A.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Uivos para a Lua


Janela da Madrugada, por Sergia A.


Sonho, quero berço
A lua cresce na janela
Acordo, adormeço.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Silêncio sem Cor




Sentávamos em lados opostos. Nossos olhares se encontravam nas rodas de discussão. Sentia de perto a vibração da voz na defesa enfática dos seus pontos de vista. Foi assim que conheci o menino da nota dez. O riso era fácil. Tinha pressa. Quis o destino que também assim fosse o adeus. Rápido, como seu pensamento. Determinou-se que seu tempo naquela sala seria breve.
Hoje seu olhar é um ponto de luz distante. Seguimos o sonho comum. Os seus, agora sem cor, pairam sobre nós em silêncio. No entanto, ali viverão para sempre. Sim, para sempre. Sempre que um novo sorriso por aquela porta adentre.

(Escrito em 03/11/2011)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A Natureza não Cansa de Fazer o Mundo?

 
Vida,   por  Sergia A.
 

Fui surpreendida, um dia desses, por uma pergunta repentina que me veio assim, do nada. A surpresa maior não era o teor da pergunta, que por si só já seria o bastante, mas principalmente, o lugar inesperado de onde brotava. Uma voz meiga e delicada em sua forma doce de me olhar nos olhos, de repente me diz: “Por que a natureza nunca cansa de fazer o mundo?” A primeira idéia que me ocorreu como resposta foi o princípio de conservação da energia, que tentei arranjar em palavras simples para justificar o processo constante de transformação da natureza. Não sei se a resposta foi satisfatória, aliás, espero sinceramente que não tenha sido para que tamanha curiosidade continue expandindo sua mente questionadora.

Passado o sufoco, pensei que talvez tivesse sido mais fácil usar uma visão religiosa para explicar o movimento da vida, mas segui meu impulso de tentar encontrar respostas na natureza. Nesse ponto não pude deixar de associar a situação vivida ao filme The Tree of Life (2011), do cultuado diretor americano Terrence Malick (A Árvore da Vida, na tradução brasileira), que tinha visto algumas semanas antes, numa dessas tardes em que me dou de presente o direito de passar duas horas numa sala de cinema. Nesse horário nunca estão tão cheias. Por sinal, na metade do filme a sala estava vazia. Faltou aos meus companheiros de espetáculo a paciência que o filme exigia. Paciência para se permitir uma experiência sensorial ímpar proporcionada por imagens de rara beleza, pela música envolvente, pela atuação perfeita de seus atores e pela delicadeza do diretor que lança através de sua lente ambígua a interrogação sobre o quanto nossas vidas individuais ou a vida na Terra é moldada pela força da natureza e pela benevolência espiritual.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

sábado, 22 de outubro de 2011

Bonito Pra Chover


David Gilmour - Wish You Were Here, 2009
Fonte: YouTube




“So, so you think you can tell
Heaven from hell,
Blue skies from pain
Can you tell a green field
From a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?”
[1]



Quando a temperatura chega aos 40 graus (Celsius), meus delírios são de chuva. Desta vez acho que foram tantos os delírios que outubro enlouqueceu e fez-se água. Acordei na noite passada em meio a trovoadas bem características das tempestades tropicais na Chapada do Corisco. Já não eram apenas as gotas que cantavam na minha janela, eram cântaros que aliviavam nuvens pesadas. Como se diz no lugar onde nasci, onde a água vinda do céu é uma bênção, o dia estava bonito, bonito pra chover. Mas o trabalho me esperava e não havia outra saída senão enfrentar as ruas encharcadas, o trânsito lento e seus motoristas ensandecidos. Nesta cidade, que ama e odeia seu sol intenso, nunca estamos preparados para chuvas. O antídoto: a voz e a guitarra de David Gilmour no som do carro entoando Wish You Were Here (1975).

terça-feira, 18 de outubro de 2011

domingo, 16 de outubro de 2011

Às Seis

Para uma folha que se desprendeu

Luz Agonizante,  por Sergia A.


Às seis amanhece
a manhã doura a promessa do dia.
Às seis anoitece
a noite tece um manto escuro sobre a cor do dia.
Às seis um príncipio
a estrada, o horizonte
Às seis o perigo
na penumbra o desconhecido
Às seis o tênue limite 
a luz a sombra, o começo o fim.
Às seis horas da tarde
agoniza a luz, cumpre-se a promessa
fim?

(Escrito em out/1998)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Entrelinhas


Recorte sobre Poema de Emily Dickinson (1830 -1886)


Fria tecla distante
Toca entre linhas o gesto
Da alma viajante.

***

Tradução

Uma possível tradução do poema de Emily Dickinson, de onde foi retirado o recorte:

Não posso ser sozinha -
Pois Multidões vêm até mim,
Companhia sem Anúncio
Que as Chaves dispensa.

Eles não têm Mantas, nem Nomes –
Nem Almanaques, nem Clima,
Mas Lares comuns
Como Gnomos

Sua Vinda, pode ser prevista
Por Guias em mim contidos
Não sua partida
Por nunca se terem ido.

(Tradução: Sergia A.)

sábado, 8 de outubro de 2011

Da série O Laboratório: A Ordem do Caos


Foi-se o segundo mês do primeiro ano da segunda parte. Daí a lembrança:


I, Robot  (Eu, Robô, na tradução brasileira)
por Alex Proyas (2004) - Fonte: YouTube


Dezembro mal havia começado e o corre-corre das contratações já se anunciava pelos corredores, salas de atendimentos e mesas de gerentes. Os telefones celulares, com seus toques infernais, traziam uma valiosa contribuição para a loucura geral que tomava conta do ambiente. Em meio àquele frenesi chamava a minha atenção uma cena no mínimo curiosa: em torno de uma das mesas de gerente uma autoridade e seus assessores, cada um portando o seu acessório tecnológico de última geração e fazendo questão de usá-lo com entusiasmo. Todos ao mesmo tempo tratando de suas urgências individuais embora, ao que se conste, estivessem ali para discutir as inúmeras pendências a serem resolvidas antes da assinatura do contrato de interesse de todos.

A cena grotesca já durava um bom tempo. Quando um encerrava a chamada acendendo um brilho de esperança, o outro berrava o hit do momento sinalizando a urgência, como urgentes parecem ser todos os assuntos dos nossos dias. Fiquei, da minha posição estratégica, a me perguntar onde foi parar o ideal iluminista de desenvolver o conhecimento e o pensamento crítico em prol da liberdade de se fazer uso da razão. O que rapidamente me ocorreu como resposta foram os filmes de ficção científica, daqueles recheados de pesadelos tecnofóbicos, nos quais máquinas dominam os homens. Eu, Robô , produção americana de 2004 dirigida por Alex Proyas, é um bom exemplar do gênero. Baseado nos contos de Isaac Asimov e trazendo outras referências do universo cultural ocidental quanto ao desejo de domínio da criatura sobre o criador, o filme explora as possíveis contradições nas “Leis da Robótica” de Asimov,

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Primavera Tropical


A Cor do Viço,  por Sergia A.


Surge em fúria ardente
A primavera sutil:
Um viço latente.


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Lobos que Habitam em Nós


Liebestod  in Tristan und Isolde de Richard Wagner
por Waltraud Meier  - Teatro Scala Milão, 2007
Fonte: YouTube

No lugar onde nasci corriam lendas assustadoras. Era um tempo em que os adultos ainda sentavam na calçada para contar histórias, escutadas por corações aflitos. Ainda assim, ouvidas e internalizadas. Cresci dando como certo que a irmã mais nova de sete donzelas era marcada por uma triste sentença: ao fazer quinze anos viraria lobisomem nas noites de lua cheia. Cheguei aos treze anos com essa aflição entalada no peito. Era a mais nova de sete irmãs, todas ainda donzelas, e não era afilhada da mais velha, que seria a forma cristã de combater a maldição. Quantas noites de lua cheia insones, ouvindo os uivos distantes! Fui salva pelo gongo. Quando fiz catorze anos casou-se a irmã de numero três. Durante muito tempo acreditei que o casamento fora fruto da atenção dos céus a minhas fervorosas orações. Lembro disso agora ao ler o conto A Companhia dos Lobos da escritora britânica Ângela Carter, publicado no livro que faz uma revisão dos contos de fada: The Bloody Chamber , 1979 (O Quarto do Barba Azul na tradução brasileira).

O conto é uma recriação de Chapeuzinho Vermelho em que a personagem central, já não mais uma criança inocente, enfrenta com a rebeldia própria da juventude os dramas da adolescência e os medos que lhes foram incutidos pelos mitos e lendas da sua gente. Com uma narrativa em primeira pessoa do plural, a obra traz um narrador que tem o ponto de vista e a voz dos habitantes do mundo mágico onde a história se insere. Não à toa o recurso gráfico nos primeiros parágrafos do texto que utiliza letras grandes no início e vai reduzindo o tamanho até chegar à normalidade no fim do terceiro parágrafo quando descreve os olhos dos lobos e alerta para os sinais de risco.

sábado, 1 de outubro de 2011

Esperança

Promessa de Chuva,  por Sergia A.


Sinto ao longe o cheiro
Ouço em gotas teu cantar
Tal grão no canteiro.


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Filhas do Sol do Equador


Há urubus no telhado
e a carne seca é servida
um escorpião encravado
na sua própria ferida
não escapa só escapo
pela porta da saída
[1]


Acabo de ler, com atraso, as notícias sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Uma conceituada revista semanal traz em destaque o Piauí como “A zebra do ENEM” por ter conseguido emplacar duas escolas particulares entre as dez melhores no exame. O conteúdo da reportagem é inquestionável e merece reflexão pelas autoridades, uma vez que de forma apropriada fala do grande fosso que existe, aqui e em todo o País, entre o nível de educação oferecido pelas escolas privadas e o nível das escolas públicas. O que incomoda, entretanto, é o tom pejorativo da manchete.

A escolha do termo “zebra” pode aqui ser entendida como desinformação da jornalista, pois as escolas citadas vem já há alguns anos sendo classificadas entre as melhores do país, portanto um resultado já esperado; ou, como a confirmação de que para a mídia produzida nos grandes centros parece fazer mal falar bem do estado mais pobre da federação, ou seja, quando a notícia é boa tem que ser tratada como uma aberração, algo que não podia acontecer.

No entanto, nascer no Piauí tem lá suas vantagens. Uma delas é que desde cedo aprendemos o valor da auto-estima, que precisa ser construída e fortalecida para servir de escudo, o que nos torna capazes de enfrentar as batalhas da vida onde quer que elas se apresentem. Superada essa fase, a nossa tarefa, além de lutar pelas transformações que precisam acontecer, é, então, exigir com ternura que nossos feitos sejam vistos retirando-se a máscara do preconceito, que, como num ciclo vicioso, contribui para a manutenção do estado de pobreza que o gera.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

sábado, 24 de setembro de 2011

Sobre a Sombra e a Luz


Musica:  Angélica por Chico Buarque
Imagens:  filme Zuzu Angel (2006) por Sérgio Rezende
Fonte: YouTube


Na noite imensa
Tudo em volta adormece
Menos tua ausência.[1]



Honestino Guimarães... Honestino Guimarães... Quatro mil estudantes silenciavam. Um silêncio ensurdecedor intercalava as chamadas que uma voz grave e delicada fazia ressoar no microfone. Um arrepio me subia pelo corpo a cada nome pronunciado. Eram nomes de estudantes como eu, com a diferença de que arbitrariamente lhes fora tirado o direito de estar ali e viver aquele momento. Isso me vem à mente agora quando tomo conhecimento de que o Congresso Nacional aprovou a criação da Comissão da Verdade. Em que pese as críticas à sua formação e autonomia, não deixa de ser um caminho para a restauração da verdade histórica e um alento aos que nesta luta inglória perderam o(a) filho(a), o marido, a mulher, o pai, a mãe, o(a) amigo(a).

Tudo parecia muito confuso. Minha cabeça rodopiava diante de tanta novidade. Mais do que sala de aula, laboratórios e professores, a universidade era aquilo. A única palavra que me vem à mente para associar às imagens que se formam para dar conta do que foram aqueles anos é efervescência. As idéias como líquido na fervura borbulhando sob pressão. Oriunda de uma formação rigorosamente religiosa numa pequena cidade do Piauí, onde o contato com o mundo chegava por meio da Voz do Brasil ou dos programas de TV censurados, aquilo tudo era por demais instigante. Curiosa, mergulhei. De repente um dia, depois de longas horas de estrada, estava lá entre estudantes de todo o país vivenciando o histórico momento de reestruturação da UNE em seu XXXII Congresso em Piracicaba-SP.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

sábado, 17 de setembro de 2011

The Great Gatsby: da Euforia do Sonho ao Império do Medo


Versão Cinematográfica de The Great Gatsby (1974) por Jack
Clayton com roteiro de Ford Coppola.
Fonte: Youtube


O sol escaldante de setembro toma conta dos nossos dias. Se não fossem os Ipês e alguns heróicos Caneleiros oferecerem cor à paisagem não sei o que seria desse início acinzentado de primavera sem orvalho nas manhãs. Explica-se: depois do feito de Bin Laden, setembro ganhou ares de marco histórico e parece ter esquecido que aqui logo abaixo do equador esperamos que ele cumpra o seu papel natural de trazer uma florada cuja beleza seja capaz de nos retirar dos ambientes fechados dos condicionadores de ar. Pois foi numa dessas tardes em que para fugir do calor e das inúmeras análises repetitivas do 11 de setembro resolvi me trancar em um ambiente bem refrigerado e reler The Great Gatsby , o retrato da “América” dos anos 1920 desenhado por F. Scott Fitzgerald.

Um clássico, independente do tempo decorrido da sua escrita, sempre encontra formas novas de tocar o leitor que vive em outros tempos. Neste setembro, uma década depois do trágico feito, não há como ler The Great Gatsby sem fazer uma atualização dos seus temas. O fim da primeira guerra mundial, com a Europa em ruínas, ofereceu aos Estados Unidos da América um tempo de euforia dando inicio ao consumo descontrolado incentivado por uma economia liberal, sem fundamentos sólidos, que foi incapaz de evitar o fim trágico representado pela quebra da bolsa de valores em 1929. Descrevendo a euforia dos primeiros anos da década, o livro traz um narrador ora onisciente ora personagem que nos conta e reflete sobre os acontecimentos de um verão em Nova York. Seus personagens arrogantes, consumistas e infelizes constroem na trama relações tão vazias quanto a futilidade de suas vidas. O personagem central, que dá o título à obra, o rico “self-made” Jay Gatsby, materializa o que a America representava: opulência vista à distância, uma aparência que encobria o conteúdo fluido, desconhecido, onde se sustentava a sua riqueza. Em um exercício futurista o autor dá a Gatsby um fim trágico, como trágico seria o fim da frágil economia americana e sua bolha especulativa alguns anos depois.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O outro em mim

Para almas sem fronteiras

Yurub (06 anos), salva da desnutrição vive em Galcaayo - Somalia
Fonte: http://www.msf.org.br/


Preciso
Urgentemente
Um gesto que te faça rir
Que te mova
Comova
Ou, que do teu rosto o pranto remova.

Preciso
Desesperadamente
Um silêncio que me faça ouvir
Teu canto, tuas dores
Teus temores
Noticias dos teus novos amores.

Preciso
Simplesmente
Perder-me de mim
Arrumar na tua trança o laço
Entrar no teu compasso
A um passo de encontrar-me em ti.

sábado, 10 de setembro de 2011

Janela em Movimento

Pelo Pára-brisa,  por Sergia A.


Na janela a estrada
Rumava ao sol nascente,
Vestia liberdade.

Poesia, Vinho e Conversa Jogada Fora

“A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!”[1]


Um convite para ouvir Manoel de Barros me bateu forte, não dando oportunidade à recusa. À noite lá estávamos, amigas de longa data em volta de uma mesa sob o calor de setembro e os acordes de um violão que se alternava à leitura dos poemas. Os sons e ritmos ora da poesia ora do violão embrenhavam-se nos ouvidos atentos e nos outros nem tanto, construindo a atmosfera singular do ambiente e do momento.

Quem nos via de longe, em algazarras sussurradas aos ouvidos talvez não compreendesse e nos tomasse por um grupo pouco afeito à sensibilidade poética que motivara o encontro, e mais devotado aos prazeres gustativos do tomate recheado e do bom tinto servidos no lugar. Entretanto, assim como a poesia e o vinho que possuem alma e grande poder inebriante, o besteirol que se apropria dos encontros de amigos é também irresistível. Os primeiros pelo poder de nos tocar profundamente e nos conduzir, talvez por caminhos distintos, ao êxtase. O segundo pelo alívio do deixar cair a máscara da sensatez imposta pela vida, e sem receio olhar nos olhos e dizer o que vier à tona sobre o assunto que se colocar na unicidade daquele instante. Daí a razão da não resistência ao triplo apelo.

Ouvimos Manoel de Barros? Talvez não com a sobriedade exigida, no entanto a força de sua poesia se fez ouvir encontrando formas misteriosas de, entre uma taça e outra ou entre bobagens ditas ao acaso, impor-se não apenas pela leitura momentânea dos poemas deixados à mesa mas por leituras outras que de forma inevitável acontecerão invisivelmente no silencio das noites, deixando “apenas que a emoção perdure / Fique na nossa vida fresca e incompreensível / Um mistério suave alisando para sempre o coração”.
 
Escrito em set/2006.
___________________________________________ 
[1] Manoel de Barros in O Livro das Ignorãnças

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Da série O Laboratório: O Tempo e o Movimento


Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.[1]

Neste 06 de setembro, uma comemoração: o primeiro mês do primeiro ano da segunda parte se foi. Não pude fugir das lembranças da primeira parte.

Hoje uma vontade irresistível de escrever me acordou mais cedo. Há algum tempo não despertava assim, com esta urgência. Alguns fatos passados e bem presentes precipitaram o desejo. Na mente uma imagem persistente: um banco de Igreja onde os seis rendem homenagem ao sétimo que agora se afasta. Lágrimas em cada olhar contrastam visivelmente com o sorriso da fotografia estendida ao pé do altar.

Sabiamente, a memória guarda os bons momentos para nos acalentar quando tudo se distancia. Setembro de 1987: criava-se na CAIXA a Divisão de Engenharia, para fazer frente aos novos desafios advindos da incorporação do BNH. Sob o comando de uma mulher destemida, lá estavam eles adaptando-se à cultura da nova empresa. Entre pensamentos lógicos e racionais, eu tentava, com o pouco que sabia e da forma que conseguia, manter a organização. A linguagem técnica de engenharia me era familiar, o que facilitava a ordenação dos inúmeros laudos, pareceres e análises que as teclas ritmadas da máquina de datilografia registravam ao longo dos dias. Em meio a divisórias cinzas e mobiliário de jacarandá formávamos um pequeno grupo com a missão de fornecer apoio técnico aos negócios e à manutenção do patrimônio da instituição. Brotava ali a semente do que viria a ser, duas décadas depois, o terceiro pé da gigantesca empresa. Brotava ali a lição de respeito e confiança que o cotidiano alimentava.

O tempo habilmente conduzia o movimento do grupo que tomava formas e rumos diversos, de acordo com as oscilações da direção central. Novos braços, novos rostos aos poucos ampliavam a produção e a responsabilidade amparados em estruturas que se montavam e desmontavam ao sabor das ondas inovadoras da administração. Ora tínhamos o status de representação regional, ora não passávamos de uma equipe vinculada a um outro poder estabelecido enquanto dormíamos. O tempo habilmente também conduzia o movimento interior das pessoas. O vai-e-vem dos modelos organizacionais nos oferecia a oportunidade de descobrir que nada somos além daquilo que nos torna humanos: o sentimento. Castelos se desmoronavam da mesma forma que se montavam, e das suas cinzas outros se edificavam em movimentos cíclicos, como cíclicos são os fenômenos da natureza. Restava-nos o aprendizado e a consciência do poder da escolha. Aprendia-se que bons e maus momentos são naturais como naturais são as montanhas e os vales, o dia e a noite, e que a realização de sonhos está diretamente relacionada ao risco da escolha. Em nome dela, já com filhos crescidos, fui impulsionada a retornar aos bancos da faculdade para atender um chamado interior, uma voz que há tempos pedia a atitude de buscar o treino para desenvolver um dom natural. Da mesma forma, seguindo cada um a sua escolha, outros caminhos foram buscados individualmente em novos movimentos delineados habilmente pelo tempo.

Na imagem da Igreja, o tempo presente parece nos oferecer um novo movimento diante do qual choramos por não querer entendê-lo como natural. Um ciclo se fecha, como a noite finda o dia que foi belo ao amanhecer. No entanto, o brilho do dia assim como o sentimento de que somos essencialmente feitos não se dissolve na escuridão da noite.

Aprendizes do tempo, precisamos agora compreender uma nova lição que exige de nós olhos capazes de enxergar o brilho na sombra que passa.

(Escrito em 22/05/2008)
________________________________________ 
[1] Ferreira Gullar. Toada à Toa in Em alguma parte alguma

sábado, 3 de setembro de 2011

O Tecido da Espera

Loreena Mckennitt . Fonte: Youtube


Now that the time has come
Soon gone is the day
There upon some distant shore
You’ll hear me say


Long as the day in the summer time
Deep as the wine dark sea
I’ll keep your heart with mine.

Till you come to me.[1]
Tenho fascínio por dicionários. Talvez por serem eles, de alguma forma, os guardiões da palavra. É com eles que me entendo quando me atormenta a angústia de encontrá-las. Foi assim que ao rever o filme Cold Mountain (2003) me dei conta que a língua portuguesa faz uso da mesma palavra – esperar - para definir o ato de aguardar, o que corresponderia na língua inglesa, por exemplo, ao verbo “to wait” e o ato de ter expectativas e desejar que no inglês seria “to hope”. Para nós, falantes da língua portuguesa, parece não haver uma clara definição dos limites entre esperar algo, alguém ou um evento e ter esperança, os múltiplos significados parecem estar naturalmente encerrados na abrangência da palavra “esperar”.

Dirigido pelo cineasta britânico Anthony Minghella (1954-2008), o filme baseado no romance histórico Cold Mountain (1997), do americano Charles Frazier (1950-), tem como cenário a guerra civil Americana (Guerra de Secessão 1861-1865), e trata em sua temática de duas faces do nosso verbo “esperar”. Com idas e vindas no tempo, narra simultaneamente a jornada de Inman, um soldado confederado e desertor, em seu perigoso retorno da guerra movido pela esperança de encontrar a sua amada, e a longa e penosa espera de Ada Monroe, noiva de Inman, em um lugar chamado Cold Mountain. Não há como não perceber que o livro e o filme são recriações de Odisséia de Homero. Há um diálogo intenso em termos estruturais (narrativa não linear e simultânea do retorno de Ulisses e da espera de Penélope) e nos significados que podem ser construídos. Inman luta desesperadamente pela sobrevivência, enfrentando ameaças de toda sorte, e acreditando que no fim o espera uma vida feliz, longe de uma guerra sem sentido. Como Penélope, Ada, enquanto espera, tece a duras penas a vida em uma fazenda e na comunidade ao seu redor porque acredita no retorno da normalidade e de um tempo feliz. Um tecido montado com fios de lágrimas, esperança e de um amor infinito. Não seria exagero dizer que no filme o tão esperado encontro dos amantes é, por sinal, responsável por uma das mais belas cenas de amor do cinema.

No mundo do nosso tempo, onde homens/mulheres poderosos continuam encontrando motivações para a guerra, Penélope e sua espera há muito deixaram de ser referência pela passividade que podem traduzir. Que o diga o tom de revolta em sua voz recriada pela escritora canadense Margaret Atwood (1939-) em A Odisséia de Penélope (2005). No entanto, fugindo da questão de gênero, vemos Inman e Ada como seres humanos que diante de circunstâncias adversas desenvolvem motivos inconscientes para amar e esperar, no amplo sentido português da palavra. Tecer a espera e a esperança, mesmo em tempos em que tudo se dissolve com o vento, parece continuar atendendo nossa necessidade de vínculos fortes para manter a vida.

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[1] Loreena Mckennitt in Penelop’s song.

Uma possível tradução:

Agora que a hora está chegando
Em breve o dia vai findar
Ao longe em uma praia distante
O que digo você ouvirá

Alongado como o dia no verão
Profundo como o escuro mar
Eu manterei junto ao meu o seu coração
Até que para mim você possa voltar.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

sábado, 27 de agosto de 2011

Em volta da mesa


O Segredo de Brokeback Mountain, por Ang Lee
Fonte: YouTube


A vida toda é uma disputa
entre gosto e degustação.[1]


Uma mesa para oito, disposta com o capricho de quem espera amigos de longa data. Amigos que a vida foi juntando em seu caminho e mesmo a chuva que caía torrencialmente naquela noite seria capaz de afastar. Com efeito contrário, a chuva era o motivo da mesa assim disposta: além de aconchegar garantia ao lugar a temperatura amena que o vinho exigia. Taças brilhantes erguidas tilintavam em nome do encontro, e a transparência do cristal permitia que a cor púrpura do vinho realçasse a singularidade do momento.

O vinho ia aos poucos dando o tom da noite e o pão acentuando o seu sabor. O gosto pela discussão fazia os assuntos jorrarem sobre a mesa se sobrepondo cada um a seu tempo. Ora leves como o azeite das pastas que revestiam o pão. Ora graves, ou mesmo picantes como as ervas que davam sabor às pastas. Por vezes filosoficamente profundos, embora sempre permeados pela imensa alegria de estar mais uma vez juntos. O Segredo de Brokeback Mountain chocara os homens, e Ang Lee com seus cowboys apaixonados, sensibilidade e belas imagens trouxe à mesa o falso moralismo americano e o nosso, preterido em seguida pela situação política do Estado ou pelos temores comuns aos pais diante da iniciação sexual dos filhos. Outras verdades pequenas ou grandes, íntimas até, iam se expondo em pequenas doses encorajadas não só pelo vinho mas principalmente pela energia propícia do momento, quando a dor já não mais pungente admite a exteriorização que alivia o peito ferido, e oferece aos que ouvem a percepção do salto que engrandece a alma e motiva a vida.

Em volta da mesa, pessoas unidas pelo prazer de degustar o sentimento fiel e delicado da afeição. Em volta da mesa, o sagrado que as palavras, ainda inebriadas, tentam eternizar.

(Escrito em 04/2006)

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1. Nietzsche, citado in OSBORNE, Lawrence. O connainsseur acidental.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Lua Partida



Minha janela II por Sergia A.



Na noite vazia
A palavra me preenche.
De repente, o dia.


domingo, 21 de agosto de 2011

Da série O laboratório: Autômato

Escrever é procurar entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. [1]



9h. Uma senha, um enter, um F2: entrada registrada com sucesso. Bons dias sonolentos dão o tom da manhã e, muito mais que uma expressão de desejo, cumprem o ritual. Computadores entram em rede enquanto o gerente passa adiante o entusiasmo que sacodiu sua madrugada. Leitura de mensagens no e-mail, faxina na caixa postal, revisão de agenda e pendências do dia anterior. Lá se foram os lentos 50 minutos iniciais de aquecimento. 10h. Abrem–se as portas. Clientes ávidos pelo atendimento suspenso há longas horas fazem filas. O som das vozes sonolentas, aos poucos, cede lugar ao murmurinho das solicitações, das queixas, das fofocas, das negociações entre águas e cafezinhos. A agitação se instala dando novo ritmo às batidas das teclas e aos ponteiros do relógio que acelerados, repentinamente, indicam a hora do almoço. Um último aperto de mão, um sorriso amarelo ao insistente que retarda o cheiro de frango grelhado do self-service da esquina. Café e bala de menta devolvem o ritmo dando a largada para o segundo ciclo. O gerente chama, o colega pede ajuda, o cliente reclama, uma cópia, um sinal de fax, uma voz que se altera, um documento se perde e se encontra entre toques estridentes do telefone mantendo o devido compasso entre o stress e o alívio. 16h. cerram-se as portas ao som irritado das vozes atrasadas que perderam aquele precioso último minuto. As teclas continuam seu ritmo acelerado. Mãos apressadas fecham as operações do dia correndo contra o tempo que ainda resta. Uma piada, um comentário maldoso lançado do fundo da sala enrubesce a presença de saias retas e comportadas. Gargalhadas ecoam quebrando a sobriedade do ambiente vazio. 17h30. Mãos delicadas erguem a persiana. A inclinação que garantiu os 40º do meio-dia oferece agora uma nova cor. Raios rubros e audaciosos traspassam o vidro da janela corrompendo o cinza para devolver aos humanos o espetáculo da vida. 18h. Uma senha, um enter e um F2: o registro da saída.9h. Uma senha, um enter, um F2: entrada registrada com sucesso. Bons dias sonolentos dão o tom da manhã e, muito mais que uma expressão de desejo, cumprem o ritual. Computadores entram em rede enquanto o gerente passa adiante o entusiasmo que sacodiu sua madrugada. Leitura de mensagens no e-mail, faxina na caixa postal, revisão de agenda e pendências do dia anterior. Lá se foram os lentos 50 minutos iniciais de aquecimento. 10h. Abrem–se as portas. Clientes ávidos pelo atendimento suspenso há longas horas fazem filas. O som das vozes sonolentas, aos poucos, cede lugar ao murmurinho das solicitações, das queixas, das fofocas, das negociações entre águas e cafezinhos. A agitação se instala dando novo ritmo às batidas das teclas e aos ponteiros do relógio que acelerados, repentinamente, indicam a hora do almoço. Um último aperto de mão, um sorriso amarelo ao insistente que retarda o cheiro de frango grelhado do self-service da esquina. Café e bala de menta devolvem o ritmo dando a largada para o segundo ciclo. O gerente chama, o colega pede ajuda, o cliente reclama, uma cópia, um sinal de fax, uma voz que se altera, um documento se perde e se encontra entre toques estridentes do telefone mantendo o devido compasso entre o stress e o alívio. 16h. cerram-se as portas ao som irritado das vozes atrasadas que perderam aquele precioso último minuto. As teclas continuam seu ritmo acelerado. Mãos apressadas fecham as operações do dia correndo contra o tempo que ainda resta. Uma piada, um comentário maldoso lançado do fundo da sala enrubesce a presença de saias retas e comportadas. Gargalhadas ecoam quebrando a sobriedade do ambiente vazio. 17h30. Mãos delicadas erguem a persiana. A inclinação que garantiu os 40º do meio-dia oferece agora uma nova cor. Raios rubros e audaciosos traspassam o vidro da janela corrompendo o cinza para devolver aos humanos o espetáculo da vida. 18h. Uma senha, um enter e um F2: o registro da saída.


[1] Clarice Lispector

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

terça-feira, 16 de agosto de 2011

A Primeira Parte: o Laboratório

Cena do filme Hanami - Cerejeiras em Flor, de Doris Dörrie

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo[1]

Vistosa, insinuava-se de longe. Ainda criança, vi um irmão enveredar por seus caminhos. Jovem, plena de certezas, vi uma irmã nela encontrar rumo novo para a vida. Quando incertezas sacudiram o coração, o acaso me apontou a porta. Segui o chamado. E lá se foram 29 anos de vida da empresa e da minha se mesclando, se bendizendo e se amaldiçoando. E de repente me vem este ar nostálgico quando inicio um tempo de preparação para o desligamento.

O antídoto está na palavra escrita que tem sobre mim um efeito mágico. Aprendi a recorrer ao seu pó de pirlimpimpim sempre que a realidade resolve me chacoalhar ou dar seus saltos. É ela, em seus delírios de sons e imagens, que me transporta para qualquer tempo e lugar e me devolve pronta para o tatame ou para o palco. Foi ela que me retirou da angústia de não pertencer ao mundo para o qual eu vendia horas preciosas do meu tempo. Foi por ela que um dia acordei acreditando que havia um sentido em estar ali, que tudo não passava de um laboratório onde as experiências aconteciam sob olhares atônitos.

Em atenção à provocação da palavra me vêm à memória os primeiros experimentos, ainda em 1982, quando lidava diariamente com motoristas de táxi agraciados com uma linha de financiamento de carros a álcool, atendendo uma política econômica do governo federal. Ali trancafiada entre paredes cinza, protegida de sol e chuva, apartada bruscamente da rebeldia com causa da minha juventude, ouvia histórias que recendiam o suor forte das ruas. Lentamente, por meio da palavra mais do que por números, me descobria não ser nada. Apenas uma peça na grande engrenagem que negocia sonhos que só o capital é capaz de prover.

O laboratório em que tais experiências se processaram em um tempo que hoje chamo primeira parte da minha vida se fez presente ao ver o filme Hanami – Cerejeiras em Flor (Alemanha, França 2008) em que uma diretora alemã, Doris Dörrie, se utiliza de dois preciosos símbolos da cultura oriental, o festival de cerejeiras japonês e os movimentos da dança “Butô”, para retratar um mundo onde a vida se perde pela falta de lucidez na percepção dos acontecimentos a seu redor. Tratando dos inúmeros dramas da pós-modernidade entre eles a proximidade e falta de comunicação, o filme de forma delicada leva à reflexão sobre como a vida pode ser intensa em seu tempo finito, quando tomamos consciência de que nada somos além dos sonhos que nos alimentam.


[1] Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) in Tabacaria, 1928


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Valor do Afeto

 
O retrato


Havia um retrato em preto e branco pendurado na parede da sala de estar. Seu olhar me acompanhava pelos corredores. Seu olhar capturava minhas intenções de travessuras. Seu olhar me censurava. Seu olhar me acalentava. Isso me vem à mente agora, repentinamente, quando leio em uma revista um artigo sobre as polêmicas decisões judiciais quanto a ineficácia da indenização por dano afetivo nos processos movidos por filhos contra pais ausentes, pelo entendimento de que a indenização não restabelece o afeto perdido.

O universo de pais e filhos e a corajosa busca pelo afeto perdido é também o que retrata o documentário Meu Arquiteto (2003), do cineasta Nathaniel Kahn, sobre a vida e obra do arquiteto Louis Kahn (1901-1974). Falando de arte e amor, o filme é um mergulho profundo na obra para compreender o homem. Um mergulho capaz de promover o encontro do filho com o pai 25 anos após a morte deste, a partir de uma necessidade do filho de entender a ausência do pai durante os 11 anos que poderiam ter convivido.




Três realidades distintas alinhadas pela mesma ausência. Três formas distintas de buscar a recomposição de uma relação de afetividade interrompida. Assim como o documentário, a lembrança do retrato na parede é a materialização da reaproximação que alguns de uma maneira tosca buscam na justiça. Fica, no entanto, a certeza de que o valor do afeto está nos laços que podem ser construídos em cada manhã, desde que estejamos abertos para a vida.

Feliz Dia dos Pais!